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Dois anos de guerra: muitos ucranianos são obrigados a escolher entre os remédios e a comida

O conflito na Ucrânia afetou gravemente a saúde pública. Hospitais, clínicas e ambulatórios foram fortemente danificados ou destruídos, enquanto aumenta o risco de desnutrição e propagação de doenças infecciosas ou mentais. O testemunho do cirurgião Dmytro Fomin que conta como tenha aumentada a carga de trabalho dos médicos e do padre Roman Montetskyi, capelão e psicólogo, que explica as dificuldades dos pequenos centros em oferecer atendimento psicológico.
Svitlana Dukhovych – Cidade do Vaticano
Quando se fala de guerras, o impacto na saúde pública é grave e imediato. Na Ucrânia, quase dois anos após o início da invasão russa, o exército de Moscou continua a bombardear sistematicamente infra-estruturas civis, incluindo instalações médicas. Muitos hospitais, clínicas e ambulatórios foram fortemente danificados ou destruídos.
Segundo dados do Ministério da Saúde ucraniano, publicados no início de janeiro, a Rússia destruiu completamente 195 instalações médicas, ou seja, impossíveis de serem recuperaradas, outras 1.497 foram danificadas. Mesma situação para ambulâncias: 253 destruídas, 103 danificadas, 125 apreendidas. Além disso, existe uma perigosa perda de contacto entre as pessoas com o sistema de saúde, ao mesmo tempo que aumenta o risco de desnutrição e de propagação de doenças infecciosas. Há também outra questão: cada explosão, cada ataque terá certamente um impacto no ambiente. Outro problema é o da saúde mental.
Aumento da carga de trabalho dos médicos
 
Conversamos sobre isso com o médico-chefe do hospital distrital de Liubashivka, na região de Odessa, o cirurgião Dmytro Fomin. Antes da guerra, o hospital prestava cuidados a 40 mil pessoas do distrito, um quarto das quais abandonaram as suas casas devido à guerra: em seu lugar chegaram deslocados, que fugiram das zonas mais afetadas.
“A carga de trabalho do hospital aumentou significativamente por falta de recursos. Isso impossibilita o atendimento adequado”, afirma o médico chefe. E diz que agora a estrutura vive de poupanças próprias e de doações de caridade. O hospital pede aos doadores não tanto dinheiro, mas sim medicamentos e equipamentos. “Por exemplo, agora precisamos de uma ambulância – sublinha – porque a nossa é antiga e o sistema de aquecimento não funciona. Como cirurgião, para trabalhar melhor, eu precisaria de equipamentos, como, por exemplo, um aparelho portátil de raio X com arco em C. Precisamos de um aparelho de raio X novo, porque o nosso já tem trinta anos. Precisamos também de material para curativos, soluções para infusões, enfim, tudo que é necessário em terapia intensiva. Não remédios em comprimidos, porque os temos. Também precisamos de material para intubação e reanimação,   que dele precisam também pacientes com AVC. Porque mesmo que vejamos que a vida de uma pessoa está por um fio, ainda lutamos até o fim para salvá-la, e para isso devemos ter o necessário disponível.”

O Dr. Dmytro Fomin

“Também há atrasos no pagamento de salários aos funcionários, mas não importa, vamos superar também isso”, explica o médico, acrescentando que no início da guerra, quando a linha do front passava a 70 km deles, as coisas estavam muito piores: ouviam-se explosões e eles não sabiam o que aconteceria no dia seguinte. “Agora aqui a situação não é tão difícil, porque à noite posso pelo menos ir para a cama e descansar de verdade, e não preciso me levantar para correr para o abrigo”.
No hospital com 140 leitos trabalham 200 pessoas, das quais apenas três (dois médicos e uma enfermeira) deixaram o emprego e foram embora. “A carga de trabalho aumentou muito tanto do ponto de vista físico como psicológico”, afirma o médico. “Do ponto de vista físico, porque as pessoas que nos procuram são muito negligenciadas. O número de câncer e de pacientes crônicos aumentou dramaticamente. Por falta de dinheiro a pessoa tem que escolher entre remédio e comida, entre água e contas para pagar, e quando tem algum sintoma prefere tomar um analgésico e pensar que ‘talvez passe’. Há também muito mais casos de acidente vascular cerebral porque – continua o Dr. Fomin – as pessoas comem mal, vivem sob constante estresse: em quase todas as famílias tem alguém luta no front. A carga psicológica dos médicos – acrescenta – também aumentou, porque as pessoas estão muito irritadas. Se você é médico e recebe uma pessoa, querendo ou não, você tem que ouvi-la. Nem sempre as pessoas vêm porque têm algum problema de saúde física, mas geralmente é a alma delas quem mais sofre, e o médico, nesse momento, vira psicólogo para elas. Hoje é muito difícil aprender a curar com a palavra, mas é realmente necessário”.
Ajudar os outros torna-se um recurso
 
 Padre Roman Montetskyi, sacerdote do Exarcado de Odessa da Igreja Greco-Católica ucraniana, também destaca a importância do cuidar. Ele que é capelão e psicólogo do hospital Liubashivka, relata que, apesar da necessidade urgente de apoio, o aconselhamento psicológico não é bem recebido nas cidades pequenas. “A maior parte das pessoas – explica – se conhece e ir ao psicólogo significa admitir que você é ‘diferente’ dos outros. As pessoas recorrem a mim principalmente quando já existem algumas manifestações físicas, quando não aguentam mais”.
O capelão afirma que muitos ucranianos encontram apoio na família, outros na fé e outros ainda no voluntariado. Padre Roman diz ainda que, para quem acaba de conseguir escapar da morte, às vezes a simples consciência da importância da vida ajuda. “Costumo falar com as pessoas sobre a importância de encontrar um sentido, ou seja, saber olhar um pouco para frente, para o futuro. Falo também sobre a busca por valores. Naturalmente, ajuda muito os pais pensarem nos filhos. Para quem tem apoio familiar e é mais fácil lidar com tudo isso em comunidade, sempre falo para as pessoas: ‘conversem, chorem juntos, encontrem-se’, porque a comunidade humana – e neste caso a cristã – é uma fonte ilimitada de recursos.”

Padre Roman Montetskyi, capelão e psicólogo do hospital Liubashivka

O sacerdote greco-católico confidencia que é capaz de ajudar as pessoas que sofrem também porque ele próprio viveu a dor da distância da sua família: para escapar ao perigo constante, a sua esposa e dois filhos mudaram-se para a Polônia. “O modo de vida tradicional habitual que existia antes da guerra também foi perdido. Então, como dizem em psicologia, era preciso integrá-lo, vivê-lo. Só mais tarde é que os recursos apareceram para fazer alguma coisa, porque é claro que o vazio permanece lá dentro, mas esse vazio pode ser preenchido de diferentes maneiras. Fazer algo pelos outros traz alívio tanto para você quanto para a pessoa que se está ajudando, por isso é recíproco. Não posso dizer que superei completamente esse desafio, ainda estou no processo. No entanto, como explicava Jung com o seu conceito de ‘curador ferido’, aqueles que experimentaram a dor, sabem e podem ajudar outros a curar.”
A guerra em grande escala na Ucrânia já dura quase dois anos. Muitas pessoas reclamam de cansaço e exaustão. “Durante uma reunião – continua o sacerdote e psicólogo– as pessoas me perguntaram: ‘O que devemos fazer? Dizem que a guerra vai durar mais três, cinco, dez anos… Versões diferentes’. Eu respondi: ‘Devemos nos adaptar’. Como escreveu Viktor Frankl a propósito dos campos de concentração, que os primeiros a entrar em colapso foram aqueles que pensaram que iria acabar rapidamente, depois aqueles que pensaram que nunca iria acabar. E só aqueles que conseguiram viver no presente, sobreviveram. É muito difícil, porque aqueles que eram recursos tradicionais, como, por exemplo, a família, muitas vezes desaparecem. É por isso que o papel do padre e do psicólogo é muito importante: mesmo que ele não aconselhe ninguém, mas simplesmente vá à uma loja, sorri para as pessoas para rua, converse um pouco com elas – isso é um testemunho e um sinal de esperança”.

Hospital destruído em bombardeio

Capelães hospitalares, grande apoio para hospitais e pacientes
 
Além de padre Roman, outros dez capelães hospitalares trabalham no Exarcado de Odessa, que abrange as regiões de Odessa, Mykolaiv, Kirovohrad e Kherson. Padre Oleksandr Bilskyi, chefe da Comissão para a pastoral na saúde, afirma que graças também ao apoio de vários patrocinadores eles conseguem fornecer medicamentos e equipamentos aos hospitais. “Nossos maiores apoiadores são os Cavaleiros de Colombo”, diz ele. “Agradecemos a Deus por ter estes amigos que nos ajudam a servir os hospitais, antes de tudo com a Palavra de Deus, mas também com ajuda concreta: tentamos garantir que cada vez que um dos nossos capelães vai a um hospital tenha algo para levar aos pacientes”.
Graças ao apoio dos Cavaleiros de Colombo, a Comissão para a Pastoral da Saúde está realizando outro importante projeto: em quatro hospitais está preparando a abertura de capelas que servirão também como centros de aconselhamento espiritual e psicológico. “Porque nem sempre uma pessoa que não crê muito consegue ir à igreja – explica padre Oleksandr – porque talvez tenha preconceitos, ou simplesmente ninguém lhe transmitiu o amor pela Igreja. Acontece que, infelizmente, eles vão com mais frequência aos centros médicos e, quando ficam sabendo de algum problema de saúde, na dor, no desespero, às vezes ficam tão confusos que não sabem o que fazer. E mais de uma vez nós, capelães, ouvimos palavras de agradecimento: as pessoas dizem que foi uma simples conversa com um padre que os salvou, os fez sentir-se melhor e continuar a sua vida”.

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O Papa: muitos conflitos abertos, não ceder à lógica das armas

Francisco divulgou uma carta por ocasião dos 80 anos do voto de Pio XII e da cidade de Roma a Maria Salus Populi Romani durante a fúria da II Guerra Mundial. O Pontífice pede que o aniversário seja uma oportunidade para “meditar em torno do terrível flagelo da guerra”. Olhando para a Ucrânia, Oriente Médio, Sudão e Mianmar, exorta a ouvir os “gritos de terror e de sofrimento” que questionam a consciência de todos e a “trabalhar pela paz na Europa e no mundo”.
Mariangela Jaguraba- Vatican News
O Papa Francisco enviou uma carta ao vice-gerente da Diocese de Roma, dom Baldassarre Reina, por ocasião dos 80 anos do voto de Pio XII e da cidade de Roma ao ícone de Nossa Senhora conhecido como “Salus Populi Romani” durante a II Guerra Mundial.
O Pontífice une-se espiritualmente a toda a comunidade diocesana que celebra pela primeira vez a memória litúrgica da Salus Populi Romani, e recorda o voto que o povo de Roma e seu Pastor, Papa Pio XII, fez a Nossa Senhora em 4 de junho de 1944 para implorar a salvação da cidade, quando o confronto direto entre o exército alemão e os aliados anglo-americanos estava prestes a acontecer”, escreve o Papa no texto.
“A devoção ao antigo ícone conservado na Basílica de Santa Maria Maior está viva há séculos no coração dos romanos, que recorriam a ele para fazer súplicas e invocações, especialmente durante pragas, desastres naturais e guerras”, escreve ainda Francisco. “Os eventos marcantes da vida religiosa e civil de Roma eram registrados em frente a essa imagem. Portanto, não é de surpreender que o povo romano desejou confiar-se mais uma vez a Maria Salus Populi Romani enquanto a Urbe vivia o pesadelo da devastação nazista”, ressalta ainda o Papa.

Pio XII com os cidadãos romanos após o bombardeio do bairro de São Lourenço

Não ceder à lógica das armas
De acordo com Francisco, “oitenta anos depois, a lembrança desse acontecimento tão cheio de significado quer ser uma ocasião para rezar por aqueles que perderam a vida na II Guerra Mundial e para fazer uma meditação renovada sobre o tremendo flagelo da guerra”.
Muitos conflitos em diferentes partes do mundo ainda estão abertos hoje. Penso em particular na martirizada Ucrânia, na Palestina e Israel, no Sudão e Mianmar, onde as armas ainda fazem barulho e mais sangue humano continua sendo derramado.

“Esses são dramas que afetam inúmeras vítimas inocentes, cujos gritos de terror e sofrimento questionam a consciência de todos: não podemos e não devemos ceder à lógica das armas!”

O apelo de Paulo VI à ONU
O Pontífice recorda que “vinte anos após o fim da II Guerra Mundial, em 1965, o Papa São Paulo VI, falando na ONU, perguntou: ‘Será que o mundo chegará a mudar a mentalidade particularista e bélica que até agora teceu grande parte de sua história?'” Segundo Francisco, “essa pergunta, que ainda aguarda uma resposta, estimula todos a trabalhar concretamente pela paz na Europa e em todo o mundo”.

“A paz é um dom de Deus que também deve encontrar hoje corações dispostos a acolhê-lo e trabalhar para serem construtores da reconciliação e testemunhas da esperança.”

Ser construtor de paz
Francisco espera “que as iniciativas promovidas para comemorar o voto popular à Mãe de Deus, nos quatro lugares que foram protagonistas daquele acontecimento, possam reavivar nos romanos a intenção de serem construtores de uma verdadeira paz em todos os lugares, relançando a fraternidade como condição essencial para recompor conflitos e hostilidade”. “Pode ser construtor de paz”, ressalta o Papa, “quem a possui dentro de si e, com coragem e mansidão, se compromete em criar vínculos, em estabelecer relações entre as pessoas, em apaziguar as tensões na família, no trabalho, na escola, entre os amigos”.
O Pontífice conclui a carta, pedindo a Nossa Senhora Medianeira para que “obtenha para toda a humanidade o dom da concórdia e da paz” e confia “todos os habitantes de Roma, especialmente os idosos, os doentes, as pessoas sozinhas e em dificuldade, à intercessão materna da Salus Populi Romani”.

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Indonésia. Ilha de Flores ainda é uma “terra prometida” de vocações

“Em junho e julho estão programadas várias ordenações diaconais entre os vários institutos missionários. No domingo, 2 de junho, 48 foram ordenados diáconos Verbitas, que serão seguidos por outros 8 diáconos Carmelitas no dia 7 de junho, e 27 interdiocesanos (Dioceses de Maumere, Ende, Ruteng, Larantuka e Denpasar) no domingo, 9 de junho. A esses se seguirão as ordenações de cinco diáconos Camilianos no próximo dia 14 de julho, na festa de nosso fundador, São Camilo de Lellis”, conta Pe. Galvani
Vatican News

 

Em 1924 os vigários e prefeitos apostólicos encontraram-se pela primeira vez, para definir uma orientação comum sobre diversas questões da vida da Igreja e sobre a relação com as …

“Nesta época de final de ano letivo, estamos obtendo bons resultados vocacionais. Nós, Camilianos, tentamos nos manter em forma tanto quanto possível com muitas pequenas coisas boas para fazer, não apenas no campo vocacional, mas também com nossas iniciativas sociais e de caridade.”
É o que conta à agência missionária Fides o padre Luigi Galvani, pioneiro na Diocese de Maumere, na Indonésia, onde os Missionários Camilianos estão presentes em três dioceses com 4 seminários, dois centros sociais onde coordenam um programa de nutrição para 160 crianças pobres, apoio à distância para cerca de 20 estudantes merecedores, um projeto de “casas especiais” para libertar os doentes mentais de situações de opressão e, por fim, um modesto projeto de produção de água mineral e do sorvete “São Camilo”.
Ordenações diaconais entre os vários institutos missionários
“Em junho e julho – explica ele – estão programadas várias ordenações diaconais entre os vários institutos missionários. No domingo, 2 de junho, 48 foram ordenados diáconos Verbitas, que serão seguidos por outros 8 diáconos Carmelitas no dia 7 de junho, e 27 interdiocesanos (Dioceses de Maumere, Ende, Ruteng, Larantuka e Denpasar) no domingo, 9 de junho. A esses se seguirão as ordenações de cinco diáconos Camilianos no próximo dia 14 de julho, na festa de nosso fundador, São Camilo de Lellis”.
A mais católica das 17.000 ilhas do arquipélago indonésio

Em algumas áreas do país, que o Papa visitará em setembro, membros do clero local e de ordens religiosas masculinas e femininas moram por alguns dias em famílias católicas, …

“Nos próximos meses, haverá também as profissões religiosas de numerosos noviços e noviças dos vários institutos masculinos e femininos presentes na Diocese de Maumere, que, no momento, atingiram o número de 62 comunidades religiosas”.
“Todos esses resultados vocacionais encorajadores – conclui o missionário – certamente recompensam o empenho dos vários promotores, mas também são um testemunho da fé e do espírito missionário de centenas e centenas de famílias na ilha de Flores, que continua sendo a mais católica das 17.000 ilhas do arquipélago indonésio. Talvez seja também por isso que Flores é chamada de “terra prometida” de vocações.
(com Fides)

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África Central, quando uma Porta Santa se abriu para o mundo

O Jubileu Extraordinário da Misericórdia, em 2015, foi aberto em um lugar sem precedentes, longe do coração cristão do mundo, a Basílica de São Pedro, mas dentro do coração do Papa Francisco, em Bangui. O cardeal Dieudonné Nzapalainga, então arcebispo da capital da África Central, revive aquele dia memorável e o significado benéfico que a visita do Pontífice produziu ao longo do tempo.
Maria Milvia Morciano e Jean Charles Putzolu – Vatican News
É tarde e a noite se prepara lentamente para chegar, tingindo o céu de rosa e dourado. A porta da Catedral de Notre-Dame em Bangui se abre, empurrada por duas mãos firmes. A figura de Francisco está de pé, vigorosa. Muitos anos se passaram desde aquele 29 de novembro de 2015, o primeiro dia do Advento e a data de início do Jubileu Extraordinário da Misericórdia, que foi inaugurado, antecipadamente, em um lugar igualmente extraordinário, na capital da África Central. Pela primeira vez na história, a abertura da Porta Santa não se realiza na Basílica de São Pedro, no túmulo do Apóstolo, no centro do mundo cristão, mas em um lugar remoto, para muitos desconhecido.
Capital espiritual
A África Central é um dos países mais sangrentos e divididos do mundo. O Papa o escolheu justamente por esse motivo, para levar misericórdia e uma mensagem de paz a uma “terra que está sofrendo há vários anos com a guerra e o ódio, a incompreensão e a falta de paz. Mas nessa terra sofrida há também todos os países que estão passando através da cruz da guerra. Bangui se torna a capital espiritual da oração pela misericórdia do Pai. Todos nós pedimos paz, misericórdia, reconciliação, perdão, amor. Por Bangui, por toda a República Centro-Africana, por todo o mundo, pelos países que estão sofrendo com a guerra, pedimos paz!”, disse o Papa na praça da igreja, depois de sair de um papamóvel, desprovido de qualquer proteção contra possíveis perigos, onde o imã também concordou em se sentar.
Um gesto universal compreendido por todos
Uma tradição antiga é transferida para um país jovem. O significado de abrir a Porta Santa e cruzar o limiar está enraizado em um simbolismo ancestral que, em Bangui, se ramifica e dá novos frutos. Ele está revestido de futuro. O gesto do Papa Francisco foi revolucionário porque, em um lugar fechado, cheio de barreiras, ele abre uma porta para a esperança, convida as pessoas a entrarem para encontrar misericórdia e paz, para encontrar Cristo e serem transformadas. Ele traduz de forma cristã uma metáfora compreensível para todos, em qualquer lugar do mundo, de qualquer tradição, religião, experiência e história. Todos entendem que se trata de um rito de passagem fundamental e sagrado.
A linha de fronteira, o limes latim, ponto final, fechamento, é transformada em limen, limiar, abertura. Talvez não seja coincidência o fato de duas palavras opostas conterem a mesma raiz, mas é interessante lembrar o fato de que, na linguagem eclesiástica, a “visitatio ad limina apostolorum” é a visita dos peregrinos aos túmulos dos apóstolos Pedro e Paulo, que remonta aos primeiros séculos da Igreja, mais tarde estendida aos bispos. Tudo fala de Jubileu.
Portas Santas em toda parte
Naquele ano de Misericórdia, muitas Portas Santas foram abertas em todo o mundo, quase um sistema solar composto por milhares de estrelas brilhantes espalhadas pela Terra, mesmo nos lugares mais remotos. Foi uma grande oportunidade, um presente dado a todos, mesmo àqueles que, por vários motivos, não podiam se locomover e viajar. Foi um jubileu extraordinário que pôde ser vivenciado em todas as igrejas locais, permitindo que aqueles que quisessem vivenciar plenamente o evento, fazer a peregrinação e atravessar a Porta da Misericórdia em sua própria diocese.
Uma esperança que vem de Roma
O cardeal Dieudonné Nzapalainga, então arcebispo de Bangui, é um dos intérpretes nodais de seu país. Sua história é de fé e de uma árdua “luta pela paz”, lembrando o título de seu livro na versão italiana, publicado pela Livraria Editora Vaticana em 2022. O cardeal centro-africano compartilhou com a mídia vaticana, aos microfones de Jean Charles Putzolu, a memória daqueles dias e as consequências benéficas da visita do Papa à África Central.
Gostaria de levá-los de volta ao dia 29 de novembro de 2015, o primeiro domingo do Advento, quando o Papa Francisco abriu a Porta Santa do Jubileu da Misericórdia. Foi em Bangui, na República Centro-Africana, portanto, em seu país: uma tradição muito antiga chegando a um país jovem. Em sua opinião, qual foi o significado desse gesto para todos os centro-africanos?
É um gesto único na história não apenas da Igreja universal, mas também da nossa Igreja.
Porque nós, centro-africanos, diante da violência, do sofrimento e da morte, encontrando-nos vivendo em um estado de absurdo, sentimos a esperança que veio de Roma por meio do homem de Deus, o Papa, que veio para aplacar, para trazer paz, tranquilidade e perdão, para trazer reconciliação, convidando nós, centro-africanos, a abrir as portas de nossos corações, cheios de ódio, rancor e vingança, para que pudéssemos nos enfrentar. É por isso que ele mesmo disse para depormos nossas armas: “leve a justiça, leve o amor”. Acredito que seu gesto será sempre lembrado aqui na República Centro-Africana. Muçulmanos, protestantes, católicos, todos nós somos unânimes em dizer que sua chegada foi salutar.
E o Papa de fato chegou. Ela se lembrou dessa mensagem, desse chamado para depor as armas. Havia uma enorme tensão até quase dois dias antes de sua chegada a Bangui. Houve mais tensão desde então? Essa mensagem foi ouvida? A mensagem do Papa foi ouvida e atendida? As armas ficaram em silêncio?
Acho que a mensagem foi ouvida. Passamos seis meses desde a partida do Papa como se estivéssemos em um país normal, algo impensável até dois dias antes de sua chegada. Sua chegada aliviou a pressão. Vimos muçulmanos saindo de seus enclaves para se juntarem a seus irmãos e irmãs católicos no estádio, para participar da grande celebração. As pessoas iam e vinham. O Km 5 [marco 5] era considerado um local onde havia muitas armas e, portanto, não se podia entrar. Mas fui até lá com os cristãos para acompanhar o Papa, dizendo aos muçulmanos: “vamos caminhar juntos!”
O Papa veio de Roma para a República Centro-Africana, os cristãos de Bangui deixaram nossos bairros para ir ao encontro de nossos irmãos, caminhando pela paz. Bem, nós marchamos e continuamos a fazê-lo desde aquele dia. Um líder rebelde nos disse que deveríamos conversar sobre espiritualidade com os imãs. Os imãs organizaram uma grande reunião para pedir aos líderes rebeldes que depusessem suas armas e muita coisa mudou desde então. Isso também foi resultado da visita do Papa.
Os imãs realizaram um grande encontro para pedir aos líderes rebeldes que deponham as armas e isso mudou muito. Esse também foi o resultado da visita do Papa, que nos deu um empurrão, nos fez recomeçar e agora estamos vendo os resultados. Hoje as armas não circulam mais como antes.
Em sua opinião, quais foram os outros frutos desse evento?
Foram os encontros entre jovens muçulmanos e jovens cristãos. Encontros bastante regulares entre mulheres muçulmanas e mulheres cristãs, e entre nós, líderes. Há pouco tempo, em março, uma mesquita a 250 quilômetros daqui foi vandalizada. O imã, o pastor protestante e eu falamos ao coração de nossos fiéis para desarmá-los e convidá-los a cooperar, respeitar, valorizar e respeitar o local. Esse, em minha opinião, é o fruto dessa passagem. Agora também pedimos que a justiça seja feita. Isso significa que aqueles que perderam suas casas devem poder recuperá-las, o que significa que aqueles que moram na casa do vizinho há muito tempo devem ter a gentileza de sair. E nós, líderes religiosos, trabalhamos com o coração. Há alguns que saem para deixar a casa para os proprietários sem passar pelos tribunais ou pelo Estado. Portanto, acho que isso também é proveitoso. Agora os corações estão dispostos e podemos conversar, podemos imaginar um futuro comum.
Quando o senhor diz que eles saem de casa, é porque eles realmente a devolvem ao seu legítimo proprietário, certo?
Exatamente isso.
Em um nível mais pessoal, Vossa Eminência, quais são suas lembranças mais fortes e talvez mais vívidas daquele período?
A lembrança mais vívida é a de entrar no quilômetro 5 dois dias antes: era impossível atravessar o posto de controle. Eu estava lá. Vi com meus próprios olhos: o Papa escolheu ir em um veículo não blindado, mas em campo aberto. Todos sabiam que havia muitas armas no local. Francisco teve a coragem de ir até lá e vimos que o imã também concordou em ir no papamóvel. Essa é a imagem mais forte. Quando saí para ir ao estádio, vi muçulmanos saindo em massa, arriscando suas vidas. Foi sua fé que os levou a sair. Um imã nos disse: ‘O Papa não veio para vocês, cristãos, mas para nós, muçulmanos. Estávamos no enclave, estávamos na escravidão. Ele nos libertou!”
Eminência, uma última pergunta: o senhor se tornou inseparável do Imã… entre cristãos e muçulmanos e também com os protestantes. Vocês realizam iniciativas juntos quase diariamente. Esse é outro fruto. É claro que é o resultado de seu trabalho, mas também é o resultado da visita do Papa…
A visita do papa nos confortou, incentivou e apoiou nesse trabalho. E fomos nós três que pedimos a ele que viesse à República Centro-Africana. Acho que todos nós somos gratos a ele. Esse é o fruto de sua passagem.
O Jubileu de 2025. Como estão se preparando para ele?
O Jubileu de 2025 é um momento importante para a Igreja. Bem, já estão sendo criados grupos aqui para refletir, orar, reunir-se e também para ver como, localmente, viveremos esse momento. Este ano celebraremos 130 anos de evangelização na República Centro-Africana e, ao mesmo tempo, estaremos caminhando para 2025, que está logo ali, e estamos trabalhando em ambos. Portanto, acho que há muito entusiasmo. Eu estava com um grupo de jovens que se encontrava na igreja em massa e dissemos uns aos outros: este é um momento importante porque é um momento de graça, mas também é um momento complicado e elevado. Não podemos deixar passar esse momento favorável.

O cardeal Dieudonné Nzapalainga

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