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Fazemos de tudo para que a vida vença, diz voluntária ucraniana

Uma jovem de Kherson fala de sua escolha e a de muitos de seus compatriotas de se dedicarem a ajudar os soldados no front neste tempo de guerra. O voluntariado é um fenômeno relativamente novo para os ucranianos, tendo se desenvolvido especialmente nos últimos dois anos. “É a nossa forma de agradecer aos nossos militares que estão libertando o nosso país”.
Svitlana Dukhovych – Cidade do Vaticano
“Quando acordei naquela manhã de 24 de fevereiro de 2022 e comecei a ver as notícias, soube que minha cidade natal, Nova Kakhovka, no sul da região de Kherson, onde nasci e vivi por vinte e cinco anos, havia sido ocupada pelos russos.”
Assim começa o relato de Olena Kulyhina, uma jovem ucraniana que no momento da invasão se encontrava em Lviv, no oeste do país, onde lecionava na Universidade Católica. Sua mãe, sua avó de 85 anos, seu irmão e sua família, bem como muitos amigos de infância, estavam na região sob ocupação. “Essa consciência – recorda – foi tão paralisante que eu não conseguia pensar em mais nada. Devia fazer alguma coisa de útil para reduzir a minha ansiedade, ajudando o nosso país nesta luta.”
Este primeiro impulso levou a jovem a experimentar diferentes formas de se tornar útil: desde a divulgação de notícias, à organização de kits médicos para os militares, ao envio de medicamentos aos civis nos territórios ocupados pelos russos, até chegar ao que faz hoje, fornecer medicamentos e equipamentos médicos para profissionais de saúde que tratam de soldados feridos no front. “Esta – explica – é a minha forma de dizer ‘obrigado’ aos nossos soldados que estão libertando o nosso país. Eles estão ajudando a mim e a minha família a voltar para casa, e tento ajudar os soldados feridos a serem tratados, para que possam se recuperar o mais rápido possível.”

Olena Kulyhina

O fenômeno do voluntariado na Ucrânia
 
Olena Kulyhina é uma das muitas ucranianas que prestam serviço voluntário, um fenômeno relativamente novo na Ucrânia, para o qual a palavra nos tempos soviéticos sequer existia. O Estado soviético havia abandonado os princípios da solidariedade civil para introduzir o princípio da proteção social comunista, segundo o qual todo necessitado, com deficiência ou incapaz de trabalhar – adulto ou menor – só poderia contar com a assistência do Estado.
O voluntariado renasceu na Ucrânia desde os primeiros anos da independência. A Revolução da Dignidade, entre o final de de 2013 e início de 2014, representou um importante impulso para a ativação do movimento voluntário: cidadãos, comunidades e associações forneceram alimentos, roupas e fundos aos voluntários que entregaram e adquiriram todo o necessário para os manifestantes de Maidan. Este movimento continuou a desenvolver-se durante a guerra no leste do país, que veio a seguir. O subsequente crescimento do voluntariado no país esteve associado ao início da invasão russa em grande escala.
Em fevereiro-abril de 2022, centenas de milhares de ucranianos, mesmo aqueles tradicionalmente distantes do voluntariado, começaram a ajudar as Forças Armadas e os seus concidadãos a organizar a resistência à agressão russa. Na fase inicial da guerra, os voluntários organizaram vários tipos de ajuda às vítimas, evacuavam e acolhiam milhões de pessoas deslocadas internamente, e assim por diante.
De acordo com dados do “Iniciativas Democráticas”, um centro ucraniano de pesquisa sociológica, cerca de 61% dos ucranianos estiveram envolvidos, de uma forma ou de outra, em atividades de voluntariado. Hoje, as organizações voluntárias compensam, em grande medida, a incapacidade do Estado em fornecer assistência médica completa aos feridos e apoio material e psicológico aos deslocados. É a pesquisa do Centro Ucraniano de Estudos Econômicos e Políticos “Razumkov”, publicado em outubro de 2023, a revelar o nível de confiança dos cidadãos ucranianos nas diversas instituições estatais e organizações da sociedade civil: as Forças Armadas da Ucrânia estão em primeiro lugar (93%), enquanto as organizações voluntárias estão em terceiro lugar (84%).
O início do percurso
 
Para Olena, a primeiro contato com o voluntariado ocorreu em 2016, quando, em colaboração com monsenhor Jan Sobilo, bispo auxiliar da Diocese latina de Kharkiv-Zaporizhzhia, envolveu-se no projeto “Papa pela Ucrânia”. Muitas das pessoas com quem ele trabalhou foram para o front imediatamente após a invasão, muitas outras chegaram mais tarde para substituí-las.
“Quase sempre, por trás de cada soldado – explica Olena – há uma pessoa que, apoiando-o, começa a fazer voluntariado. Podem ser os seus familiares ou os colegas de trabalho, ou, por exemplo, pessoas como os meus estudantes universitários que, nos primeiros dias da guerra, estavam muito confusos e iam fazer voluntariado onde conseguiam: alguns acolhiam pessoas deslocadas na estação ferroviária de Lviv , outros coletavam alimentos e roupas em salas de aula universitárias, teciam redes de camuflagem e assim por diante.”
Olena descreve “toda uma categoria de voluntários” que são as esposas, as mães ou irmãs de soldados que muitas vezes se reúnem, mesmo nas paróquias, para fazer algum trabalho manual (por exemplo, tricotar meias ou redes de camuflagem para soldados) e, ao mesmo tempo, rezar e apoiar uns aos outros. Há quem costure roupas para os feridos, visite soldados hospitalizados, prepare comida para eles ou forneça remédios.
“Há muitas pessoas comuns na Ucrânia – continua a jovem – que não têm experiência de voluntariado, que trabalham, criam os filhos e que, ao mesmo tempo, procuram uma oportunidade para se tornarem úteis. Até as crianças, os jovens, muitas vezes fazem desenhos e enviam-nos aos nossos soldados no front junto com outros presentes que os seus pais conseguem juntar. Isso também é um grande apoio, porque visitando os hospitais próximos ao front, vi que tem paredes inteiras com desenhos infantis, e isso é importante para os soldados, porque assim eles entendem que seus filhos e os filhos de outras pessoas se lembram deles e estão esperando por eles em casa.”

Olena Kulyhina com colega no trabalho de voluntariado

Fornecimento de medicamentos
 
Olena Kulyhina realiza o seu trabalho de voluntariado juntamente com uma amiga sua com quem, no início da guerra, enviava medicamentos a civis nos territórios ocupados da região de Kherson, onde haviam ficado seus familiares, que conseguiram escapar sete meses depois do início do conflito. Agora as duasajudam os médicos militares.
“Estudamos as listas de medicamentos necessários para salvar a vida das pessoas – explica a voluntária – e nestes quase dois anos, já temos listas permanentes e cerca de 90% das vezes se repetem. Depois procuramos fundos ou parceiros que possam comprar os medicamentos no exterior e enviá-los para nós, ou comprá-los na Ucrânia e depois enviá-los ainda mais rapidamente. O que buscamos são equipamentos de proteção individual, ou seja, a chamada medicina tática para primeiros socorros após o ferimento, quando é necessário estancar uma hemorragia e salvar a vida de uma pessoa na fase pré-hospitalar, ou seja, antes da pessoa ferida ser internada no hospital para tratamento mais profissional. Temos cerca de cento e cinquenta médicos trabalhando nas regiões sul e leste da Ucrânia, que ajudamos constantemente.”
As duas voluntárias têm uma grande comunidade de pessoas que as apoiam, não só da Ucrânia, mas também da Polônia, Alemanha, Itália, Espanha, Estados Unidos da América. “Para essas pessoas nos tornamos um ponto de referência, seus representantes na linha do front – explica Olena – porque quando lhes mostro as fotos das pessoas que recebem a ajuda que enviaram de suas cidades e de seus países, surge uma sinergia em que cada um faça a sua parte”.

O dia do matrimônio de Olena Kulyhina

“…que a vida vença”
 
Não obstante todos os horrores da guerra, os jovens na Ucrânia apaixonam-se e formam famílias. Olena também se casou recentemente. Seu marido, assim como seu irmão, estão combatendo no front. “Naturalmente é difícil para cada família dividida pela guerra – admite – é muito difícil para as famílias em que as mulheres com filhos são obrigadas a ir para o exterior, enquanto os homens vão para o front. Para os homens, muitas vezes é mais seguro saber que a família, principalmente as crianças, está segura, mas fisicamente é muito difícil estar a uma grande distância, não nos vermos com frequência. Algumas mulheres corajosas, se não têm filhos muito pequenos, aproximam-se do front para passar algum tempo com os seus entes queridos”.
Na verdade, é muito importante que os rapazes e as moças que estão na linha do front tenham este apoio, saibam que a sua família está com eles. Para quem permanece nos bastidores ou mesmo no exterior, é realmente um grande desafio, principalmente quando não há conexão e não é possível se comunicar. “Minha família tem apenas um mês e meio – continua a voluntária. – Nos casamos na última semana de 2023, tomamos essa decisão sabendo que não precisávamos esperar nem mais um momento, porque essa é a nossa vida, estamos vivendo ela agora. No início da guerra pensávamos que seria uma guerra curta, que reuniríamos todas as forças, todos os recursos, e com a ajuda da comunidade internacional acreditávamos que talvez dentro de seis meses, um ano, conseguiríamos todos voltar para casa e continuar a viver como antes. Mas agora, no final do segundo ano de guerra, olhamos para o tempo de uma forma completamente diferente, para cada dia que vivemos e cada dia é importante. No último ano, houve muitas perdas de conhecidos no front, médicos que conheci, amigos, parentes dos meus amigos, todos deram a vida por nós. E quando vejo essas notícias, entendo que não sabemos quanto tempo ainda teremos para enfrentar essa provação. Portanto, cada decisão que tomamos, incluindo a nossa decisão de casar, é um sinal de que a vida vence a morte nos nossos corações, na nossa fé, nos nossos planos, e que cada um de nós está fazendo tudo o que pode para garantir que esta vida vença”.

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O Papa: muitos conflitos abertos, não ceder à lógica das armas

Francisco divulgou uma carta por ocasião dos 80 anos do voto de Pio XII e da cidade de Roma a Maria Salus Populi Romani durante a fúria da II Guerra Mundial. O Pontífice pede que o aniversário seja uma oportunidade para “meditar em torno do terrível flagelo da guerra”. Olhando para a Ucrânia, Oriente Médio, Sudão e Mianmar, exorta a ouvir os “gritos de terror e de sofrimento” que questionam a consciência de todos e a “trabalhar pela paz na Europa e no mundo”.
Mariangela Jaguraba- Vatican News
O Papa Francisco enviou uma carta ao vice-gerente da Diocese de Roma, dom Baldassarre Reina, por ocasião dos 80 anos do voto de Pio XII e da cidade de Roma ao ícone de Nossa Senhora conhecido como “Salus Populi Romani” durante a II Guerra Mundial.
O Pontífice une-se espiritualmente a toda a comunidade diocesana que celebra pela primeira vez a memória litúrgica da Salus Populi Romani, e recorda o voto que o povo de Roma e seu Pastor, Papa Pio XII, fez a Nossa Senhora em 4 de junho de 1944 para implorar a salvação da cidade, quando o confronto direto entre o exército alemão e os aliados anglo-americanos estava prestes a acontecer”, escreve o Papa no texto.
“A devoção ao antigo ícone conservado na Basílica de Santa Maria Maior está viva há séculos no coração dos romanos, que recorriam a ele para fazer súplicas e invocações, especialmente durante pragas, desastres naturais e guerras”, escreve ainda Francisco. “Os eventos marcantes da vida religiosa e civil de Roma eram registrados em frente a essa imagem. Portanto, não é de surpreender que o povo romano desejou confiar-se mais uma vez a Maria Salus Populi Romani enquanto a Urbe vivia o pesadelo da devastação nazista”, ressalta ainda o Papa.

Pio XII com os cidadãos romanos após o bombardeio do bairro de São Lourenço

Não ceder à lógica das armas
De acordo com Francisco, “oitenta anos depois, a lembrança desse acontecimento tão cheio de significado quer ser uma ocasião para rezar por aqueles que perderam a vida na II Guerra Mundial e para fazer uma meditação renovada sobre o tremendo flagelo da guerra”.
Muitos conflitos em diferentes partes do mundo ainda estão abertos hoje. Penso em particular na martirizada Ucrânia, na Palestina e Israel, no Sudão e Mianmar, onde as armas ainda fazem barulho e mais sangue humano continua sendo derramado.

“Esses são dramas que afetam inúmeras vítimas inocentes, cujos gritos de terror e sofrimento questionam a consciência de todos: não podemos e não devemos ceder à lógica das armas!”

O apelo de Paulo VI à ONU
O Pontífice recorda que “vinte anos após o fim da II Guerra Mundial, em 1965, o Papa São Paulo VI, falando na ONU, perguntou: ‘Será que o mundo chegará a mudar a mentalidade particularista e bélica que até agora teceu grande parte de sua história?'” Segundo Francisco, “essa pergunta, que ainda aguarda uma resposta, estimula todos a trabalhar concretamente pela paz na Europa e em todo o mundo”.

“A paz é um dom de Deus que também deve encontrar hoje corações dispostos a acolhê-lo e trabalhar para serem construtores da reconciliação e testemunhas da esperança.”

Ser construtor de paz
Francisco espera “que as iniciativas promovidas para comemorar o voto popular à Mãe de Deus, nos quatro lugares que foram protagonistas daquele acontecimento, possam reavivar nos romanos a intenção de serem construtores de uma verdadeira paz em todos os lugares, relançando a fraternidade como condição essencial para recompor conflitos e hostilidade”. “Pode ser construtor de paz”, ressalta o Papa, “quem a possui dentro de si e, com coragem e mansidão, se compromete em criar vínculos, em estabelecer relações entre as pessoas, em apaziguar as tensões na família, no trabalho, na escola, entre os amigos”.
O Pontífice conclui a carta, pedindo a Nossa Senhora Medianeira para que “obtenha para toda a humanidade o dom da concórdia e da paz” e confia “todos os habitantes de Roma, especialmente os idosos, os doentes, as pessoas sozinhas e em dificuldade, à intercessão materna da Salus Populi Romani”.

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Indonésia. Ilha de Flores ainda é uma “terra prometida” de vocações

“Em junho e julho estão programadas várias ordenações diaconais entre os vários institutos missionários. No domingo, 2 de junho, 48 foram ordenados diáconos Verbitas, que serão seguidos por outros 8 diáconos Carmelitas no dia 7 de junho, e 27 interdiocesanos (Dioceses de Maumere, Ende, Ruteng, Larantuka e Denpasar) no domingo, 9 de junho. A esses se seguirão as ordenações de cinco diáconos Camilianos no próximo dia 14 de julho, na festa de nosso fundador, São Camilo de Lellis”, conta Pe. Galvani
Vatican News

 

Em 1924 os vigários e prefeitos apostólicos encontraram-se pela primeira vez, para definir uma orientação comum sobre diversas questões da vida da Igreja e sobre a relação com as …

“Nesta época de final de ano letivo, estamos obtendo bons resultados vocacionais. Nós, Camilianos, tentamos nos manter em forma tanto quanto possível com muitas pequenas coisas boas para fazer, não apenas no campo vocacional, mas também com nossas iniciativas sociais e de caridade.”
É o que conta à agência missionária Fides o padre Luigi Galvani, pioneiro na Diocese de Maumere, na Indonésia, onde os Missionários Camilianos estão presentes em três dioceses com 4 seminários, dois centros sociais onde coordenam um programa de nutrição para 160 crianças pobres, apoio à distância para cerca de 20 estudantes merecedores, um projeto de “casas especiais” para libertar os doentes mentais de situações de opressão e, por fim, um modesto projeto de produção de água mineral e do sorvete “São Camilo”.
Ordenações diaconais entre os vários institutos missionários
“Em junho e julho – explica ele – estão programadas várias ordenações diaconais entre os vários institutos missionários. No domingo, 2 de junho, 48 foram ordenados diáconos Verbitas, que serão seguidos por outros 8 diáconos Carmelitas no dia 7 de junho, e 27 interdiocesanos (Dioceses de Maumere, Ende, Ruteng, Larantuka e Denpasar) no domingo, 9 de junho. A esses se seguirão as ordenações de cinco diáconos Camilianos no próximo dia 14 de julho, na festa de nosso fundador, São Camilo de Lellis”.
A mais católica das 17.000 ilhas do arquipélago indonésio

Em algumas áreas do país, que o Papa visitará em setembro, membros do clero local e de ordens religiosas masculinas e femininas moram por alguns dias em famílias católicas, …

“Nos próximos meses, haverá também as profissões religiosas de numerosos noviços e noviças dos vários institutos masculinos e femininos presentes na Diocese de Maumere, que, no momento, atingiram o número de 62 comunidades religiosas”.
“Todos esses resultados vocacionais encorajadores – conclui o missionário – certamente recompensam o empenho dos vários promotores, mas também são um testemunho da fé e do espírito missionário de centenas e centenas de famílias na ilha de Flores, que continua sendo a mais católica das 17.000 ilhas do arquipélago indonésio. Talvez seja também por isso que Flores é chamada de “terra prometida” de vocações.
(com Fides)

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África Central, quando uma Porta Santa se abriu para o mundo

O Jubileu Extraordinário da Misericórdia, em 2015, foi aberto em um lugar sem precedentes, longe do coração cristão do mundo, a Basílica de São Pedro, mas dentro do coração do Papa Francisco, em Bangui. O cardeal Dieudonné Nzapalainga, então arcebispo da capital da África Central, revive aquele dia memorável e o significado benéfico que a visita do Pontífice produziu ao longo do tempo.
Maria Milvia Morciano e Jean Charles Putzolu – Vatican News
É tarde e a noite se prepara lentamente para chegar, tingindo o céu de rosa e dourado. A porta da Catedral de Notre-Dame em Bangui se abre, empurrada por duas mãos firmes. A figura de Francisco está de pé, vigorosa. Muitos anos se passaram desde aquele 29 de novembro de 2015, o primeiro dia do Advento e a data de início do Jubileu Extraordinário da Misericórdia, que foi inaugurado, antecipadamente, em um lugar igualmente extraordinário, na capital da África Central. Pela primeira vez na história, a abertura da Porta Santa não se realiza na Basílica de São Pedro, no túmulo do Apóstolo, no centro do mundo cristão, mas em um lugar remoto, para muitos desconhecido.
Capital espiritual
A África Central é um dos países mais sangrentos e divididos do mundo. O Papa o escolheu justamente por esse motivo, para levar misericórdia e uma mensagem de paz a uma “terra que está sofrendo há vários anos com a guerra e o ódio, a incompreensão e a falta de paz. Mas nessa terra sofrida há também todos os países que estão passando através da cruz da guerra. Bangui se torna a capital espiritual da oração pela misericórdia do Pai. Todos nós pedimos paz, misericórdia, reconciliação, perdão, amor. Por Bangui, por toda a República Centro-Africana, por todo o mundo, pelos países que estão sofrendo com a guerra, pedimos paz!”, disse o Papa na praça da igreja, depois de sair de um papamóvel, desprovido de qualquer proteção contra possíveis perigos, onde o imã também concordou em se sentar.
Um gesto universal compreendido por todos
Uma tradição antiga é transferida para um país jovem. O significado de abrir a Porta Santa e cruzar o limiar está enraizado em um simbolismo ancestral que, em Bangui, se ramifica e dá novos frutos. Ele está revestido de futuro. O gesto do Papa Francisco foi revolucionário porque, em um lugar fechado, cheio de barreiras, ele abre uma porta para a esperança, convida as pessoas a entrarem para encontrar misericórdia e paz, para encontrar Cristo e serem transformadas. Ele traduz de forma cristã uma metáfora compreensível para todos, em qualquer lugar do mundo, de qualquer tradição, religião, experiência e história. Todos entendem que se trata de um rito de passagem fundamental e sagrado.
A linha de fronteira, o limes latim, ponto final, fechamento, é transformada em limen, limiar, abertura. Talvez não seja coincidência o fato de duas palavras opostas conterem a mesma raiz, mas é interessante lembrar o fato de que, na linguagem eclesiástica, a “visitatio ad limina apostolorum” é a visita dos peregrinos aos túmulos dos apóstolos Pedro e Paulo, que remonta aos primeiros séculos da Igreja, mais tarde estendida aos bispos. Tudo fala de Jubileu.
Portas Santas em toda parte
Naquele ano de Misericórdia, muitas Portas Santas foram abertas em todo o mundo, quase um sistema solar composto por milhares de estrelas brilhantes espalhadas pela Terra, mesmo nos lugares mais remotos. Foi uma grande oportunidade, um presente dado a todos, mesmo àqueles que, por vários motivos, não podiam se locomover e viajar. Foi um jubileu extraordinário que pôde ser vivenciado em todas as igrejas locais, permitindo que aqueles que quisessem vivenciar plenamente o evento, fazer a peregrinação e atravessar a Porta da Misericórdia em sua própria diocese.
Uma esperança que vem de Roma
O cardeal Dieudonné Nzapalainga, então arcebispo de Bangui, é um dos intérpretes nodais de seu país. Sua história é de fé e de uma árdua “luta pela paz”, lembrando o título de seu livro na versão italiana, publicado pela Livraria Editora Vaticana em 2022. O cardeal centro-africano compartilhou com a mídia vaticana, aos microfones de Jean Charles Putzolu, a memória daqueles dias e as consequências benéficas da visita do Papa à África Central.
Gostaria de levá-los de volta ao dia 29 de novembro de 2015, o primeiro domingo do Advento, quando o Papa Francisco abriu a Porta Santa do Jubileu da Misericórdia. Foi em Bangui, na República Centro-Africana, portanto, em seu país: uma tradição muito antiga chegando a um país jovem. Em sua opinião, qual foi o significado desse gesto para todos os centro-africanos?
É um gesto único na história não apenas da Igreja universal, mas também da nossa Igreja.
Porque nós, centro-africanos, diante da violência, do sofrimento e da morte, encontrando-nos vivendo em um estado de absurdo, sentimos a esperança que veio de Roma por meio do homem de Deus, o Papa, que veio para aplacar, para trazer paz, tranquilidade e perdão, para trazer reconciliação, convidando nós, centro-africanos, a abrir as portas de nossos corações, cheios de ódio, rancor e vingança, para que pudéssemos nos enfrentar. É por isso que ele mesmo disse para depormos nossas armas: “leve a justiça, leve o amor”. Acredito que seu gesto será sempre lembrado aqui na República Centro-Africana. Muçulmanos, protestantes, católicos, todos nós somos unânimes em dizer que sua chegada foi salutar.
E o Papa de fato chegou. Ela se lembrou dessa mensagem, desse chamado para depor as armas. Havia uma enorme tensão até quase dois dias antes de sua chegada a Bangui. Houve mais tensão desde então? Essa mensagem foi ouvida? A mensagem do Papa foi ouvida e atendida? As armas ficaram em silêncio?
Acho que a mensagem foi ouvida. Passamos seis meses desde a partida do Papa como se estivéssemos em um país normal, algo impensável até dois dias antes de sua chegada. Sua chegada aliviou a pressão. Vimos muçulmanos saindo de seus enclaves para se juntarem a seus irmãos e irmãs católicos no estádio, para participar da grande celebração. As pessoas iam e vinham. O Km 5 [marco 5] era considerado um local onde havia muitas armas e, portanto, não se podia entrar. Mas fui até lá com os cristãos para acompanhar o Papa, dizendo aos muçulmanos: “vamos caminhar juntos!”
O Papa veio de Roma para a República Centro-Africana, os cristãos de Bangui deixaram nossos bairros para ir ao encontro de nossos irmãos, caminhando pela paz. Bem, nós marchamos e continuamos a fazê-lo desde aquele dia. Um líder rebelde nos disse que deveríamos conversar sobre espiritualidade com os imãs. Os imãs organizaram uma grande reunião para pedir aos líderes rebeldes que depusessem suas armas e muita coisa mudou desde então. Isso também foi resultado da visita do Papa.
Os imãs realizaram um grande encontro para pedir aos líderes rebeldes que deponham as armas e isso mudou muito. Esse também foi o resultado da visita do Papa, que nos deu um empurrão, nos fez recomeçar e agora estamos vendo os resultados. Hoje as armas não circulam mais como antes.
Em sua opinião, quais foram os outros frutos desse evento?
Foram os encontros entre jovens muçulmanos e jovens cristãos. Encontros bastante regulares entre mulheres muçulmanas e mulheres cristãs, e entre nós, líderes. Há pouco tempo, em março, uma mesquita a 250 quilômetros daqui foi vandalizada. O imã, o pastor protestante e eu falamos ao coração de nossos fiéis para desarmá-los e convidá-los a cooperar, respeitar, valorizar e respeitar o local. Esse, em minha opinião, é o fruto dessa passagem. Agora também pedimos que a justiça seja feita. Isso significa que aqueles que perderam suas casas devem poder recuperá-las, o que significa que aqueles que moram na casa do vizinho há muito tempo devem ter a gentileza de sair. E nós, líderes religiosos, trabalhamos com o coração. Há alguns que saem para deixar a casa para os proprietários sem passar pelos tribunais ou pelo Estado. Portanto, acho que isso também é proveitoso. Agora os corações estão dispostos e podemos conversar, podemos imaginar um futuro comum.
Quando o senhor diz que eles saem de casa, é porque eles realmente a devolvem ao seu legítimo proprietário, certo?
Exatamente isso.
Em um nível mais pessoal, Vossa Eminência, quais são suas lembranças mais fortes e talvez mais vívidas daquele período?
A lembrança mais vívida é a de entrar no quilômetro 5 dois dias antes: era impossível atravessar o posto de controle. Eu estava lá. Vi com meus próprios olhos: o Papa escolheu ir em um veículo não blindado, mas em campo aberto. Todos sabiam que havia muitas armas no local. Francisco teve a coragem de ir até lá e vimos que o imã também concordou em ir no papamóvel. Essa é a imagem mais forte. Quando saí para ir ao estádio, vi muçulmanos saindo em massa, arriscando suas vidas. Foi sua fé que os levou a sair. Um imã nos disse: ‘O Papa não veio para vocês, cristãos, mas para nós, muçulmanos. Estávamos no enclave, estávamos na escravidão. Ele nos libertou!”
Eminência, uma última pergunta: o senhor se tornou inseparável do Imã… entre cristãos e muçulmanos e também com os protestantes. Vocês realizam iniciativas juntos quase diariamente. Esse é outro fruto. É claro que é o resultado de seu trabalho, mas também é o resultado da visita do Papa…
A visita do papa nos confortou, incentivou e apoiou nesse trabalho. E fomos nós três que pedimos a ele que viesse à República Centro-Africana. Acho que todos nós somos gratos a ele. Esse é o fruto de sua passagem.
O Jubileu de 2025. Como estão se preparando para ele?
O Jubileu de 2025 é um momento importante para a Igreja. Bem, já estão sendo criados grupos aqui para refletir, orar, reunir-se e também para ver como, localmente, viveremos esse momento. Este ano celebraremos 130 anos de evangelização na República Centro-Africana e, ao mesmo tempo, estaremos caminhando para 2025, que está logo ali, e estamos trabalhando em ambos. Portanto, acho que há muito entusiasmo. Eu estava com um grupo de jovens que se encontrava na igreja em massa e dissemos uns aos outros: este é um momento importante porque é um momento de graça, mas também é um momento complicado e elevado. Não podemos deixar passar esse momento favorável.

O cardeal Dieudonné Nzapalainga

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