Connect with us

Notícias

Garimpo e barbárie: uma história de genocídio e de luta dos Yanomami

O artigo é de Gabriel Vilardi: Os Yanomami sabem o que querem, já as autoridades federais não parecem ter tanta certeza… “Existe um ambiente de desumanização que cala na alma, em que a agonia e a dor são expressão de uma morte logo ali adiante”.

Gabriel Vilardi – jesuíta, bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e bacharel em Filosofia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE – Belo Horizonte).
Na Abya Yala amplamente cristã a mera (re)existência dos Povos Indígenas se revela contracultural e antissistêmica, portanto intolerável para as sempre velhas e inamovíveis elites coloniais, adoradoras do deus-mercado. Um continente perpassado por massacres, genocídios e sistemáticos apagamentos culturais. E entre esses povos crucificados encontra-se o Povo Yanomami, para quem “sobreviver é a maior dificuldade e a morte lenta o destino mais próximo”, como já ensinava o teólogo jesuíta Jon Sobrino.
Para aprofundar a dimensão do já tão denunciado – porém, infelizmente, com pouca efetividade prática – genocídio Yanomami, aconteceu o debate “Ya temí xoa: genocídio e resistência Yanomami”, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, com a participação da irmã religiosa da Consolata, Mary Agnes, do advogado do Conselho Indígena de Roraima (CIR) Ivo Macuxi e do membro do Regional Sul do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), Roberto Liebgott. Durante pouco mais de duas horas os convidados puderam trazer sua experiência e reflexões críticas a partir de uma vivência comprometida de todos com a causa indígena. Vale a pena retomar a exposição gravada e destrinchar a complexidade do cenário esboçado.
Sem deixar de reconhecer que “o início do processo da retirada dos garimpeiros foi um passo fundamental que o atual governo deu, apesar de ainda inconcluso”, assim como a importância do “fornecimento de alimentação para as crianças com graves problemas de desnutrição” e “a retomada do diálogo entre as organizações Yanomami e o governo federal”, Ivo Macuxi expôs com clareza a dramaticidade enfrentada por seus parentes.
Afinal, como pontuou com lucidez, sendo um dos sucessores de Joenia Wapichana no departamento jurídico de uma das maiores organizações indígenas do país, possui consciência de que o papel do movimento é cobrar o governo para que cumpra suas obrigações constitucionais. Ainda que dificilmente a maioria das relações entre os atuais ocupantes de funções públicas, com suas antigas organizações sociais, estejam construídas com esse nível de consciência.
“O que precisa avançar é garantir um efetivo plano de segurança para a Terra Indígena Yanomami, assegurando a proteção das comunidades e das equipes de saúde, com a implantação de bases de proteção territorial em pontos estratégicos”, afirma o advogado indígena. Mas isso deve ser feito, frisa com sabedoria, sempre a partir do “diálogo com organizações indígenas e indigenistas, porque sozinho, sem escutar as lideranças, o governo não conseguirá solucionar o problema”, como se tem constatado pelos terríveis diagnósticos. Nas disputas fratricidas dos representantes do poder público, embebidas de uma sufocante vaidade, a escuta franca e de qualidade é a primeira a ser sacrificada, em nome de projetos pessoais egoístas a despeito de coletividades inteiras.
Citando a recente decisão federal de criar um centro de coordenação avançado na capital Boa Vista, avisou com a cautela própria de seu Povo Macuxi: “precisamos ver se as pessoas que estarão à frente da Casa de Governo, em Roraima, terão conhecimento das especificidades da realidade Yanomami”. Porque, prossegue certeiro, “percebemos que alguns cargos-chave estavam sendo ocupados por pessoas que desconhecem as questões dessa realidade”, como “inclusive a própria ministra Sônia reconheceu, equívocos foram cometidos na gestão da resposta governamental”. Um exemplo citado, que deve ser no mínimo desconcertante para as autoridades, foi “a distribuição de itens alimentares alheios à cultura Yanomami”, o que, além de não ter matado a fome dos subnutridos, gerou desperdício de recursos públicos.
Em seguida, vivendo há mais de 20 anos no território Yanomami, a missionária queniana partilhou suas angústias pelo genocídio visto de perto, sem deixar de reafirmar sua admiração pela força desse “povo da esperança, que não se deixa abater e pisando esse chão de Omama, quer viver e viver bem”! O poderoso Bem Viver dos Povos Indígenas.
Profunda conhecedora da espiritualidade e cosmologia do povo que segura o céu, contou que compreende sua missão como um seguimento ao trabalho iniciado pelos seus companheiros e companheiras da Consolata, em 1965, com a fundação da Missão Catrimani. Entre eles, vale destacar o incansável e apaixonado, Irmão Carlo Zacquini, que dedicou mais de 50 anos de sua vida a se fazer Yanomami com os Yanomami. Essa instigante história de amor e compromisso entre as irmãs, os padres, os irmãos da Consolata e o Povo Yanomami está valiosamente registrada no livro de Corrado Dalmonego, O encontro Nohimayou. Memórias da Missão Catrimani: construindo relações de alianças com o povo Yanomami.
A Irmã Mary Agnes recuperou, ainda, a memória da catastrófica construção da Perimetral, nos anos 1970 e a terrível onda garimpeira dos anos 1980, recordando a profética presença da Diocese de Roraima nesses momentos tão duros e difíceis. A estimativa de indígenas mortos nessa época passava de 2.500 Yanomami, complementou Roberto Liebgott. Como não lembrar um dos maiores bispos da Amazônia de todos os tempos, o saudoso Dom Aldo Mongiano, que certa vez apontou para a refratária sociedade roraimense o “privilégio que era ter o Povo Yanomami em seu meio”?
“Quando cheguei nos anos 2000”, segue a religiosa, “o objetivo era investir na formação dos Yanomami, para que fossem protagonistas da sua história, tanto na saúde quanto na educação”. Métodos paternalistas não serviam mais, segundo o novo proceder do CIMI, mas sim a busca pela conscientização dos povos. Para tanto se valeu de sua formação como enfermeira e pôde “colaborar na preparação de novos agentes indígenas de saúde (AIS) e dos microscopistas, que faziam a busca ativa da malária com seus microscópios nas próprias malocas”. Com a mais recente invasão garimpeira, os índices de malária explodiram novamente, castigando de forma cruel os donos da terra.
Como testemunha de uma história de muita luta, partilhou ter visto “o nascimento das associações indígenas, na busca pelos seus direitos, entre elas a Hutukara”, dirigida pelo grande xamã Davi Kopenawa. Mas a volta intensa dos garimpeiros foi como um triste pesadelo, tendo impactado fortemente os jovens e a levado a se perguntar: “o que está acontecendo com o povo da esperança, o povo dos sonhos? Uma mudança muito grande”.
Então, resolveu estudar o genocídio e passou a compreendê-lo como “a morte dessa grande árvore da identidade” de um povo. “Até hoje escuto na radiofonia que existem postos de saúde fechados, há meses”, denuncia indignada. “As pessoas espalhadas pelo território estão sem assistência e eu vivo isso com angústia, porque não posso chegar às outras comunidades”, conclui a missionária.
Fazendo referência ao Carnaval, lembrou do samba-enredo da Salgueiro que gritou a resistência do povo Yanomami e, como boa conhecedora dessa língua, explicou: ya temí xoa – eu estou vivo, presente, resisto. Ao trazer a barbárie vivida nos últimos anos, a missionária indigenista insiste na importância do protagonismo das lideranças indígenas, em um longo caminho que vem sendo construído há décadas: “seis meses depois da declaração de emergência sanitária aconteceu o Fórum de Lideranças Yanomami, na comunidade Maturacá, de 10 a 14 de julho de 2023, e seu documento final é muito claro: ‘é preciso retirar os garimpeiros, controlar os avanços da malária e reconstruir o sistema de atendimento da saúde para que possamos retomar nossas vidas’”. Entenderam?
Os Yanomami sabem o que querem, já as autoridades federais não parecem ter tanta certeza… “Existe um ambiente de desumanização que cala na alma, em que a agonia e a dor são expressão de uma morte logo ali adiante”, vaticinou o indigenista do CIMI, que não nega a sua reconhecida veia poética. Roberto Liebgoot recuperou a desastrosa – para ficar por aí – gestão do então presidente da FUNAI, Romero Jucá, em que expulsou os missionários indigenistas das terras indígenas, para evitar as sucessivas e corajosas denúncias de violações dos Direitos Humanos desses povos.
Como se não bastasse, para não ficar devendo às piores histórias de terror, mesmo após a vitoriosa demarcação da Terra Indígena, em 1992, no ano seguinte ocorreu o covarde massacre de Haximu, com ampla repercussão internacional, graças aos relatos das religiosas da Diocese de Roraima. “Os Yanomami estão sendo agredidos há décadas e não há nenhuma perspectiva por parte do Estado brasileiro de pôr fim a essas violações”, constata Liebgott.
Para que bem se compreenda o nível de gravidade do genocídio, foi durante o famigerado governo Bolsonaro que se promoveu um novo estímulo ao garimpo, mas agora com o agravante dessa atividade ilícita contar com o apoio e controle do crime organizado, inclusive de narcotraficantes. Expôs que, apesar da atual administração ter envidado “esforços e boas intenções, não conseguiram fazer cessar as agressões”, uma vez que “existem freios que impedem que as coisas avancem, porque uma parcela de genocidas que compõe o atual governo também estava no anterior”.
Como tão bem analisou o experiente missionário do CIMI, avançar implica em “unir esforços para que os freios sejam retirados e essa situação mude”, responsabilizando “não só os garimpeiros que invadem o território, mas especialmente todos aqueles que financiam, assessoram e dão amparo a essa invasão”. Acrescentemos aí as altas autoridades que lucram com essa indústria da morte.
Disputas por protagonismo e ciúmes infantis entre os agentes estatais que integram o campo democrático, e precisam travar embates com os anti-indígenas que compõem o governo, só postergam qualquer solução e minam cada vez mais um já combalido Povo Yanomami. Haverá espaço para união e trabalho conjunto entre os poucos, mas esperados aliados da causa indígena ou os egos e interesses outros se sobreporão ao grito “ya temí xoa”?

Continue Reading
Click to comment

Leave a Reply

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Notícias

O Papa: muitos conflitos abertos, não ceder à lógica das armas

Francisco divulgou uma carta por ocasião dos 80 anos do voto de Pio XII e da cidade de Roma a Maria Salus Populi Romani durante a fúria da II Guerra Mundial. O Pontífice pede que o aniversário seja uma oportunidade para “meditar em torno do terrível flagelo da guerra”. Olhando para a Ucrânia, Oriente Médio, Sudão e Mianmar, exorta a ouvir os “gritos de terror e de sofrimento” que questionam a consciência de todos e a “trabalhar pela paz na Europa e no mundo”.
Mariangela Jaguraba- Vatican News
O Papa Francisco enviou uma carta ao vice-gerente da Diocese de Roma, dom Baldassarre Reina, por ocasião dos 80 anos do voto de Pio XII e da cidade de Roma ao ícone de Nossa Senhora conhecido como “Salus Populi Romani” durante a II Guerra Mundial.
O Pontífice une-se espiritualmente a toda a comunidade diocesana que celebra pela primeira vez a memória litúrgica da Salus Populi Romani, e recorda o voto que o povo de Roma e seu Pastor, Papa Pio XII, fez a Nossa Senhora em 4 de junho de 1944 para implorar a salvação da cidade, quando o confronto direto entre o exército alemão e os aliados anglo-americanos estava prestes a acontecer”, escreve o Papa no texto.
“A devoção ao antigo ícone conservado na Basílica de Santa Maria Maior está viva há séculos no coração dos romanos, que recorriam a ele para fazer súplicas e invocações, especialmente durante pragas, desastres naturais e guerras”, escreve ainda Francisco. “Os eventos marcantes da vida religiosa e civil de Roma eram registrados em frente a essa imagem. Portanto, não é de surpreender que o povo romano desejou confiar-se mais uma vez a Maria Salus Populi Romani enquanto a Urbe vivia o pesadelo da devastação nazista”, ressalta ainda o Papa.

Pio XII com os cidadãos romanos após o bombardeio do bairro de São Lourenço

Não ceder à lógica das armas
De acordo com Francisco, “oitenta anos depois, a lembrança desse acontecimento tão cheio de significado quer ser uma ocasião para rezar por aqueles que perderam a vida na II Guerra Mundial e para fazer uma meditação renovada sobre o tremendo flagelo da guerra”.
Muitos conflitos em diferentes partes do mundo ainda estão abertos hoje. Penso em particular na martirizada Ucrânia, na Palestina e Israel, no Sudão e Mianmar, onde as armas ainda fazem barulho e mais sangue humano continua sendo derramado.

“Esses são dramas que afetam inúmeras vítimas inocentes, cujos gritos de terror e sofrimento questionam a consciência de todos: não podemos e não devemos ceder à lógica das armas!”

O apelo de Paulo VI à ONU
O Pontífice recorda que “vinte anos após o fim da II Guerra Mundial, em 1965, o Papa São Paulo VI, falando na ONU, perguntou: ‘Será que o mundo chegará a mudar a mentalidade particularista e bélica que até agora teceu grande parte de sua história?'” Segundo Francisco, “essa pergunta, que ainda aguarda uma resposta, estimula todos a trabalhar concretamente pela paz na Europa e em todo o mundo”.

“A paz é um dom de Deus que também deve encontrar hoje corações dispostos a acolhê-lo e trabalhar para serem construtores da reconciliação e testemunhas da esperança.”

Ser construtor de paz
Francisco espera “que as iniciativas promovidas para comemorar o voto popular à Mãe de Deus, nos quatro lugares que foram protagonistas daquele acontecimento, possam reavivar nos romanos a intenção de serem construtores de uma verdadeira paz em todos os lugares, relançando a fraternidade como condição essencial para recompor conflitos e hostilidade”. “Pode ser construtor de paz”, ressalta o Papa, “quem a possui dentro de si e, com coragem e mansidão, se compromete em criar vínculos, em estabelecer relações entre as pessoas, em apaziguar as tensões na família, no trabalho, na escola, entre os amigos”.
O Pontífice conclui a carta, pedindo a Nossa Senhora Medianeira para que “obtenha para toda a humanidade o dom da concórdia e da paz” e confia “todos os habitantes de Roma, especialmente os idosos, os doentes, as pessoas sozinhas e em dificuldade, à intercessão materna da Salus Populi Romani”.

Continue Reading

Notícias

Indonésia. Ilha de Flores ainda é uma “terra prometida” de vocações

“Em junho e julho estão programadas várias ordenações diaconais entre os vários institutos missionários. No domingo, 2 de junho, 48 foram ordenados diáconos Verbitas, que serão seguidos por outros 8 diáconos Carmelitas no dia 7 de junho, e 27 interdiocesanos (Dioceses de Maumere, Ende, Ruteng, Larantuka e Denpasar) no domingo, 9 de junho. A esses se seguirão as ordenações de cinco diáconos Camilianos no próximo dia 14 de julho, na festa de nosso fundador, São Camilo de Lellis”, conta Pe. Galvani
Vatican News

 

Em 1924 os vigários e prefeitos apostólicos encontraram-se pela primeira vez, para definir uma orientação comum sobre diversas questões da vida da Igreja e sobre a relação com as …

“Nesta época de final de ano letivo, estamos obtendo bons resultados vocacionais. Nós, Camilianos, tentamos nos manter em forma tanto quanto possível com muitas pequenas coisas boas para fazer, não apenas no campo vocacional, mas também com nossas iniciativas sociais e de caridade.”
É o que conta à agência missionária Fides o padre Luigi Galvani, pioneiro na Diocese de Maumere, na Indonésia, onde os Missionários Camilianos estão presentes em três dioceses com 4 seminários, dois centros sociais onde coordenam um programa de nutrição para 160 crianças pobres, apoio à distância para cerca de 20 estudantes merecedores, um projeto de “casas especiais” para libertar os doentes mentais de situações de opressão e, por fim, um modesto projeto de produção de água mineral e do sorvete “São Camilo”.
Ordenações diaconais entre os vários institutos missionários
“Em junho e julho – explica ele – estão programadas várias ordenações diaconais entre os vários institutos missionários. No domingo, 2 de junho, 48 foram ordenados diáconos Verbitas, que serão seguidos por outros 8 diáconos Carmelitas no dia 7 de junho, e 27 interdiocesanos (Dioceses de Maumere, Ende, Ruteng, Larantuka e Denpasar) no domingo, 9 de junho. A esses se seguirão as ordenações de cinco diáconos Camilianos no próximo dia 14 de julho, na festa de nosso fundador, São Camilo de Lellis”.
A mais católica das 17.000 ilhas do arquipélago indonésio

Em algumas áreas do país, que o Papa visitará em setembro, membros do clero local e de ordens religiosas masculinas e femininas moram por alguns dias em famílias católicas, …

“Nos próximos meses, haverá também as profissões religiosas de numerosos noviços e noviças dos vários institutos masculinos e femininos presentes na Diocese de Maumere, que, no momento, atingiram o número de 62 comunidades religiosas”.
“Todos esses resultados vocacionais encorajadores – conclui o missionário – certamente recompensam o empenho dos vários promotores, mas também são um testemunho da fé e do espírito missionário de centenas e centenas de famílias na ilha de Flores, que continua sendo a mais católica das 17.000 ilhas do arquipélago indonésio. Talvez seja também por isso que Flores é chamada de “terra prometida” de vocações.
(com Fides)

Continue Reading

Notícias

África Central, quando uma Porta Santa se abriu para o mundo

O Jubileu Extraordinário da Misericórdia, em 2015, foi aberto em um lugar sem precedentes, longe do coração cristão do mundo, a Basílica de São Pedro, mas dentro do coração do Papa Francisco, em Bangui. O cardeal Dieudonné Nzapalainga, então arcebispo da capital da África Central, revive aquele dia memorável e o significado benéfico que a visita do Pontífice produziu ao longo do tempo.
Maria Milvia Morciano e Jean Charles Putzolu – Vatican News
É tarde e a noite se prepara lentamente para chegar, tingindo o céu de rosa e dourado. A porta da Catedral de Notre-Dame em Bangui se abre, empurrada por duas mãos firmes. A figura de Francisco está de pé, vigorosa. Muitos anos se passaram desde aquele 29 de novembro de 2015, o primeiro dia do Advento e a data de início do Jubileu Extraordinário da Misericórdia, que foi inaugurado, antecipadamente, em um lugar igualmente extraordinário, na capital da África Central. Pela primeira vez na história, a abertura da Porta Santa não se realiza na Basílica de São Pedro, no túmulo do Apóstolo, no centro do mundo cristão, mas em um lugar remoto, para muitos desconhecido.
Capital espiritual
A África Central é um dos países mais sangrentos e divididos do mundo. O Papa o escolheu justamente por esse motivo, para levar misericórdia e uma mensagem de paz a uma “terra que está sofrendo há vários anos com a guerra e o ódio, a incompreensão e a falta de paz. Mas nessa terra sofrida há também todos os países que estão passando através da cruz da guerra. Bangui se torna a capital espiritual da oração pela misericórdia do Pai. Todos nós pedimos paz, misericórdia, reconciliação, perdão, amor. Por Bangui, por toda a República Centro-Africana, por todo o mundo, pelos países que estão sofrendo com a guerra, pedimos paz!”, disse o Papa na praça da igreja, depois de sair de um papamóvel, desprovido de qualquer proteção contra possíveis perigos, onde o imã também concordou em se sentar.
Um gesto universal compreendido por todos
Uma tradição antiga é transferida para um país jovem. O significado de abrir a Porta Santa e cruzar o limiar está enraizado em um simbolismo ancestral que, em Bangui, se ramifica e dá novos frutos. Ele está revestido de futuro. O gesto do Papa Francisco foi revolucionário porque, em um lugar fechado, cheio de barreiras, ele abre uma porta para a esperança, convida as pessoas a entrarem para encontrar misericórdia e paz, para encontrar Cristo e serem transformadas. Ele traduz de forma cristã uma metáfora compreensível para todos, em qualquer lugar do mundo, de qualquer tradição, religião, experiência e história. Todos entendem que se trata de um rito de passagem fundamental e sagrado.
A linha de fronteira, o limes latim, ponto final, fechamento, é transformada em limen, limiar, abertura. Talvez não seja coincidência o fato de duas palavras opostas conterem a mesma raiz, mas é interessante lembrar o fato de que, na linguagem eclesiástica, a “visitatio ad limina apostolorum” é a visita dos peregrinos aos túmulos dos apóstolos Pedro e Paulo, que remonta aos primeiros séculos da Igreja, mais tarde estendida aos bispos. Tudo fala de Jubileu.
Portas Santas em toda parte
Naquele ano de Misericórdia, muitas Portas Santas foram abertas em todo o mundo, quase um sistema solar composto por milhares de estrelas brilhantes espalhadas pela Terra, mesmo nos lugares mais remotos. Foi uma grande oportunidade, um presente dado a todos, mesmo àqueles que, por vários motivos, não podiam se locomover e viajar. Foi um jubileu extraordinário que pôde ser vivenciado em todas as igrejas locais, permitindo que aqueles que quisessem vivenciar plenamente o evento, fazer a peregrinação e atravessar a Porta da Misericórdia em sua própria diocese.
Uma esperança que vem de Roma
O cardeal Dieudonné Nzapalainga, então arcebispo de Bangui, é um dos intérpretes nodais de seu país. Sua história é de fé e de uma árdua “luta pela paz”, lembrando o título de seu livro na versão italiana, publicado pela Livraria Editora Vaticana em 2022. O cardeal centro-africano compartilhou com a mídia vaticana, aos microfones de Jean Charles Putzolu, a memória daqueles dias e as consequências benéficas da visita do Papa à África Central.
Gostaria de levá-los de volta ao dia 29 de novembro de 2015, o primeiro domingo do Advento, quando o Papa Francisco abriu a Porta Santa do Jubileu da Misericórdia. Foi em Bangui, na República Centro-Africana, portanto, em seu país: uma tradição muito antiga chegando a um país jovem. Em sua opinião, qual foi o significado desse gesto para todos os centro-africanos?
É um gesto único na história não apenas da Igreja universal, mas também da nossa Igreja.
Porque nós, centro-africanos, diante da violência, do sofrimento e da morte, encontrando-nos vivendo em um estado de absurdo, sentimos a esperança que veio de Roma por meio do homem de Deus, o Papa, que veio para aplacar, para trazer paz, tranquilidade e perdão, para trazer reconciliação, convidando nós, centro-africanos, a abrir as portas de nossos corações, cheios de ódio, rancor e vingança, para que pudéssemos nos enfrentar. É por isso que ele mesmo disse para depormos nossas armas: “leve a justiça, leve o amor”. Acredito que seu gesto será sempre lembrado aqui na República Centro-Africana. Muçulmanos, protestantes, católicos, todos nós somos unânimes em dizer que sua chegada foi salutar.
E o Papa de fato chegou. Ela se lembrou dessa mensagem, desse chamado para depor as armas. Havia uma enorme tensão até quase dois dias antes de sua chegada a Bangui. Houve mais tensão desde então? Essa mensagem foi ouvida? A mensagem do Papa foi ouvida e atendida? As armas ficaram em silêncio?
Acho que a mensagem foi ouvida. Passamos seis meses desde a partida do Papa como se estivéssemos em um país normal, algo impensável até dois dias antes de sua chegada. Sua chegada aliviou a pressão. Vimos muçulmanos saindo de seus enclaves para se juntarem a seus irmãos e irmãs católicos no estádio, para participar da grande celebração. As pessoas iam e vinham. O Km 5 [marco 5] era considerado um local onde havia muitas armas e, portanto, não se podia entrar. Mas fui até lá com os cristãos para acompanhar o Papa, dizendo aos muçulmanos: “vamos caminhar juntos!”
O Papa veio de Roma para a República Centro-Africana, os cristãos de Bangui deixaram nossos bairros para ir ao encontro de nossos irmãos, caminhando pela paz. Bem, nós marchamos e continuamos a fazê-lo desde aquele dia. Um líder rebelde nos disse que deveríamos conversar sobre espiritualidade com os imãs. Os imãs organizaram uma grande reunião para pedir aos líderes rebeldes que depusessem suas armas e muita coisa mudou desde então. Isso também foi resultado da visita do Papa.
Os imãs realizaram um grande encontro para pedir aos líderes rebeldes que deponham as armas e isso mudou muito. Esse também foi o resultado da visita do Papa, que nos deu um empurrão, nos fez recomeçar e agora estamos vendo os resultados. Hoje as armas não circulam mais como antes.
Em sua opinião, quais foram os outros frutos desse evento?
Foram os encontros entre jovens muçulmanos e jovens cristãos. Encontros bastante regulares entre mulheres muçulmanas e mulheres cristãs, e entre nós, líderes. Há pouco tempo, em março, uma mesquita a 250 quilômetros daqui foi vandalizada. O imã, o pastor protestante e eu falamos ao coração de nossos fiéis para desarmá-los e convidá-los a cooperar, respeitar, valorizar e respeitar o local. Esse, em minha opinião, é o fruto dessa passagem. Agora também pedimos que a justiça seja feita. Isso significa que aqueles que perderam suas casas devem poder recuperá-las, o que significa que aqueles que moram na casa do vizinho há muito tempo devem ter a gentileza de sair. E nós, líderes religiosos, trabalhamos com o coração. Há alguns que saem para deixar a casa para os proprietários sem passar pelos tribunais ou pelo Estado. Portanto, acho que isso também é proveitoso. Agora os corações estão dispostos e podemos conversar, podemos imaginar um futuro comum.
Quando o senhor diz que eles saem de casa, é porque eles realmente a devolvem ao seu legítimo proprietário, certo?
Exatamente isso.
Em um nível mais pessoal, Vossa Eminência, quais são suas lembranças mais fortes e talvez mais vívidas daquele período?
A lembrança mais vívida é a de entrar no quilômetro 5 dois dias antes: era impossível atravessar o posto de controle. Eu estava lá. Vi com meus próprios olhos: o Papa escolheu ir em um veículo não blindado, mas em campo aberto. Todos sabiam que havia muitas armas no local. Francisco teve a coragem de ir até lá e vimos que o imã também concordou em ir no papamóvel. Essa é a imagem mais forte. Quando saí para ir ao estádio, vi muçulmanos saindo em massa, arriscando suas vidas. Foi sua fé que os levou a sair. Um imã nos disse: ‘O Papa não veio para vocês, cristãos, mas para nós, muçulmanos. Estávamos no enclave, estávamos na escravidão. Ele nos libertou!”
Eminência, uma última pergunta: o senhor se tornou inseparável do Imã… entre cristãos e muçulmanos e também com os protestantes. Vocês realizam iniciativas juntos quase diariamente. Esse é outro fruto. É claro que é o resultado de seu trabalho, mas também é o resultado da visita do Papa…
A visita do papa nos confortou, incentivou e apoiou nesse trabalho. E fomos nós três que pedimos a ele que viesse à República Centro-Africana. Acho que todos nós somos gratos a ele. Esse é o fruto de sua passagem.
O Jubileu de 2025. Como estão se preparando para ele?
O Jubileu de 2025 é um momento importante para a Igreja. Bem, já estão sendo criados grupos aqui para refletir, orar, reunir-se e também para ver como, localmente, viveremos esse momento. Este ano celebraremos 130 anos de evangelização na República Centro-Africana e, ao mesmo tempo, estaremos caminhando para 2025, que está logo ali, e estamos trabalhando em ambos. Portanto, acho que há muito entusiasmo. Eu estava com um grupo de jovens que se encontrava na igreja em massa e dissemos uns aos outros: este é um momento importante porque é um momento de graça, mas também é um momento complicado e elevado. Não podemos deixar passar esse momento favorável.

O cardeal Dieudonné Nzapalainga

Continue Reading

Mais Vistos

Copyright © 2024 - Caminho Divino