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Iniciativas aliviam o sofrimento dos migrantes na Espanha

Organizações de inspiração católica implementam uma série de programas sociais em Ceuta e Algeciras, auxiliando aqueles que chegam da África e entram na Europa. Um dos maiores desafios é a luta contra o tráfico humano, que expõe as mulheres à prostituição forçada.
Felipe Herrera-Espaliat, enviado especial a Ceuta e Algeciras
Ceuta é uma cidade espanhola, mas está localizada na África, no norte do Marrocos, próxima ao Estreito de Gibraltar. É um território estratégico não apenas para a Espanha, mas também para os milhares de migrantes africanos que tentam entrar nela todos os anos, pisando na Europa pela primeira vez. Mas desde 2020, quando o acesso à fronteira foi severamente restringido, criando obstáculos consideráveis no caminho do fluxo humano, tudo se tornou muito mais difícil. 

Mohamed, com apenas 9 anos de idade, fugiu de sua casa no Marrocos para buscar um futuro na Europa. Depois de passar por vários centros de proteção à criança, uma comunidade de …

Uma barreira de oito quilômetros de comprimento e dez metros de altura funciona como uma fronteira entre os dois países, uma barreira que centenas de pessoas tentam escalar todos os dias. Muitos conseguem, mas são presos e imediatamente deportados de volta para o Marrocos ou, no melhor dos casos, são levados para centros de detenção para estrangeiros. Outros, correndo mais riscos, contornam esse muro, nadando por uma média de quatro horas da costa marroquina até as margens de Ceuta. Aqueles que não morrem nessa tentativa, chegam exaustos, encharcados e sem nada, tremendo não só de frio, mas também de medo de serem descobertos pela polícia.

A barreira de oito quilômetros de comprimento e dez quilômetros de altura que marca a fronteira entre Ceuta e Marrocos chega até a costa do mar. (Giovanni Culmone/GSF)

Mas os riscos não terminam aí, especialmente para as mulheres que, muitas vezes enganadas com falsas promessas de trabalho, caem nas mãos de redes de tráfico humano que as forçam a se prostituir. Assim, elas acabam vivendo em apartamentos que são, ao mesmo tempo, seus alojamentos e o bordel do qual só podem sair por algumas horas por dia, sob o controle estrito da máfia que as sequestrou.

Embora seja um meio de impedir a imigração ilegal do Marrocos, dezenas de pessoas tentam escalá-la todos os dias para entrar no território espanhol de Ceuta. (Giovanni Culmone/GSF)

Dupla vulnerabilidade
Mas as organizações da Igreja Católica que lutam contra o tráfico humano também operam em Ceuta, como a Fundação Cruz Blanca. Entre seus muitos programas de assistência aos mais necessitados e migrantes estão iniciativas para resgatar mulheres que foram forçadas a se prostituir. Suas visitas aos prostíbulos levam suprimentos médicos e, ao fazê-lo, entram em contato com elas.
Irene Pascual, mediadora social dessa instituição, conhece de perto as vítimas do tráfico. Ela acompanha pessoalmente muitas delas para dar-lhes orientação e apoio para que possam sair dessa situação. Contudo, a mediadora social diz que não é nada fácil, porque os cafetões se aproveitam do fato de que essas mulheres não falam o idioma local e não têm redes de apoio. “A mulher tem uma dupla vulnerabilidade: o fato de ser migrante e o fato de ser mulher. As mulheres não veem outra saída quando chegam a um país que não conhecem. A única maneira que elas veem para sobreviver é exercer a prostituição”, explica Irene.

Irene Pascual trabalha nos programas da Fundação Cruz Blanca que buscam resgatar mulheres vítimas de tráfico humano que são forçadas a se prostituir. (Giovanni Culmone/GSF)

Segregação em “El Príncipe”
Essa fundação, com 20 centros de atendimento na Espanha, é dirigida pela comunidade religiosa dos franciscanos da Cruz Blanca e gerenciada por equipes altamente qualificadas para enfrentar os desafios do risco social e da atual crise migratória. “Os migrantes chegam com necessidades muito diferentes, e os vários profissionais ajudam a identificar essas necessidades específicas. Nós, irmãos, nos unimos a eles e estamos dispostos a trabalhar 24 horas por dia, diariamente. E tudo isso por amor a Deus”, assegura o irmão Cosmas Nduli Ndambuki.

O bairro “El Príncipe” de Ceuta é um reflexo de seus altos níveis de segregação urbana. Seus habitantes, em sua maioria muçulmanos, acusam as autoridades pela falta de apoio social. (Giovanni Culmone/GSF)

A sede dessa organização em Ceuta fica no bairro “El Príncipe”, considerado uma das áreas mais perigosas não só da cidade, mas de toda a Espanha. Fica muito próximo à fronteira e habitado quase inteiramente por muçulmanos do Marrocos, que encheram a área de mesquitas. Entre essa população está a maior concentração de pessoas sem documentos, que não podem trabalhar legalmente nem mesmo ter acesso a benefícios sociais. É o caso de Omar Layadi, um barbeiro que vive no local há 16 anos. Como nem ele, nem sua esposa têm permissão de residência, tampouco o filho de três anos nascido aqui, que não possui sequer uma nacionalidade, pois não há consulado marroquino em Ceuta. Apesar de tudo, Omar diz que prefere ficar nessas condições na Espanha a voltar para o Marrocos. “O trabalho e a vida são melhores aqui. Tenho muitos amigos, muitos clientes e minha família. Tenho tudo aqui”, afirma o migrante.

O filho de Omar Layadi, de três anos, não tem nacionalidade. Nascido em Ceuta, filho de pais sem documentos, não tem reconhecimento legal. (Giovanni Culmone/GSF)

Um pouco mais privilegiado foi Nayat Abdelsalam, espanhola de origem marroquina e líder social muçulmana que trabalha com a Igreja Católica para enfrentar a crise migratória. Como moradora de “El Príncipe”, ela conhece de perto as necessidades de seus vizinhos e luta por políticas que combatam a segregação territorial a que os muçulmanos foram submetidos, bem como a falta de direitos sociais. “Aqueles que não regularizaram sua situação, não têm ajuda. Eles podem ter acesso a um banco de alimentos oferecido pela Igreja, ou a uma refeição, mas não há ajuda, projetos ou programas para esse tipo de pessoa”, denuncia Nayat.

Nayat Abdelsalam é uma líder que faz sua voz ser ouvida, exigindo uma melhoria nas condições de vida dos milhares de muçulmanos de origem marroquina que vivem em Ceuta. (Giovanni Culmone/GSF)

Migrantes cada vez mais jovens
Atravessando o Estreito de Gibraltar, a 44 quilômetros de distância, está o porto de Algeciras, onde outra equipe da Fundação Cruz Blanca oferece apoio àqueles que já entraram no continente europeu, mas continuam vulneráveis. Há pouco mais de um ano, eles acolheram Abdeslam Ibn Yauch, um marroquino de 31 anos que trabalha como pintor e operário, uma profissão que ele espera exercer na Espanha quando tiver a permissão de residência. Nesse meio tempo, ele está fazendo cursos técnicos e auxiliando os migrantes que chegam, a maioria deles jovens. “Os migrantes agora são muito jovens, e a preocupação deles é trabalhar para ajudar no sustento da mãe. Acho que a ferida mais profunda que eles carregam consigo é ter deixado a família”, explica a educadora social Mayte Sos, ao descrever o tipo de migrante que chega à Cruz Blanca. 

O sofrimento, os problemas pessoais e a distância de suas famílias não conseguiram destruir os sonhos de Fatoumata, Martial e Saleha. Esses três jovens de origem estrangeira …

Ali também foi resgatada Awa Seck, uma senegalesa de 42 anos que vive há muito tempo na Mauritânia por motivos de trabalho. Há três anos, ela decidiu migrar para mais longe de sua família e chegou a Algeciras, na esperança de encontrar um emprego que facilitasse o fornecimento de alimentos, roupas e educação para seus filhos, que permaneceram no Senegal com sua mãe. “Vim para cá para mudar minha vida, para encontrar um bom emprego”, explica Awa, orgulhosa por estar atingindo seus objetivos. Hoje ela tem uma permissão de residência, além de um emprego no setor de culinária, e está economizando dinheiro para que sua família venha morar com ela.

A senegalesa Awa Seck mantém contato próximo com Mayte Sos e os franciscanos da Cruz Blanca. Foram eles que lhe estenderam a mão quando ela chegou há três anos da Mauritânia. (Giovanni Culmone/GSF)

Tanto em Ceuta quanto em Algeciras, aqueles que fazem parte das equipes interdisciplinares da Cruz Blanca sabem que sua missão vai muito além da mera assistência jurídica, sanitária ou social aos migrantes. Os profissionais e voluntários tentam, acima de tudo, dar dignidade àqueles que pedem ajuda, muitas vezes de forma desesperada. Suas histórias de vida estão carregadas de traumas vividos em seus países de origem e da dor da separação de seus entes queridos, mas também da esperança de um futuro melhor. O irmão Giovanni Alseco, um franciscano da Cruz Blanca, enfatiza que o grande objetivo dessa fundação é ser uma família que acolhe, acompanha e transforma. “Colocamos em prática o Evangelho do Bom Samaritano, sempre a serviço total dos mais necessitados, e sempre tentamos encher a vida dos outros de alegria”, conclui o religioso.

Abdeslam Ibn Yauch (de casaco preto) e o irmão Giovanni Alseco ajudam quatro jovens marroquinos que acabaram de chegar em Algeciras a preencher os formulários de permissão de residência. (Giovanni Culmone/GSF)

Com profundo espírito humano, trabalhadores e voluntários da Fundação Cruz Blanca em Ceuta oferecem assistência social aos migrantes que chegam à cidade. (Giovanni Culmone/GSF)

Na cidade de Ceuta, cada vez mais cursos de espanhol são lecionados em árabe. As organizações da Igreja Católica os coordenam e oferecem sua própria infraestrutura para a execução dos programas. (Giovanni Culmone/GSF)

O bairro “El Príncipe” está localizado em Ceuta, próximo à fronteira com o Marrocos. De suas janelas, muitos olham para seu país de origem, que não podem visitar porque estão sem documentos na Espanha. (Giovanni Culmone/GSF)

Esta reportagem foi realizada em colaboração com o Global Solidarity Forum.

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O Papa: muitos conflitos abertos, não ceder à lógica das armas

Francisco divulgou uma carta por ocasião dos 80 anos do voto de Pio XII e da cidade de Roma a Maria Salus Populi Romani durante a fúria da II Guerra Mundial. O Pontífice pede que o aniversário seja uma oportunidade para “meditar em torno do terrível flagelo da guerra”. Olhando para a Ucrânia, Oriente Médio, Sudão e Mianmar, exorta a ouvir os “gritos de terror e de sofrimento” que questionam a consciência de todos e a “trabalhar pela paz na Europa e no mundo”.
Mariangela Jaguraba- Vatican News
O Papa Francisco enviou uma carta ao vice-gerente da Diocese de Roma, dom Baldassarre Reina, por ocasião dos 80 anos do voto de Pio XII e da cidade de Roma ao ícone de Nossa Senhora conhecido como “Salus Populi Romani” durante a II Guerra Mundial.
O Pontífice une-se espiritualmente a toda a comunidade diocesana que celebra pela primeira vez a memória litúrgica da Salus Populi Romani, e recorda o voto que o povo de Roma e seu Pastor, Papa Pio XII, fez a Nossa Senhora em 4 de junho de 1944 para implorar a salvação da cidade, quando o confronto direto entre o exército alemão e os aliados anglo-americanos estava prestes a acontecer”, escreve o Papa no texto.
“A devoção ao antigo ícone conservado na Basílica de Santa Maria Maior está viva há séculos no coração dos romanos, que recorriam a ele para fazer súplicas e invocações, especialmente durante pragas, desastres naturais e guerras”, escreve ainda Francisco. “Os eventos marcantes da vida religiosa e civil de Roma eram registrados em frente a essa imagem. Portanto, não é de surpreender que o povo romano desejou confiar-se mais uma vez a Maria Salus Populi Romani enquanto a Urbe vivia o pesadelo da devastação nazista”, ressalta ainda o Papa.

Pio XII com os cidadãos romanos após o bombardeio do bairro de São Lourenço

Não ceder à lógica das armas
De acordo com Francisco, “oitenta anos depois, a lembrança desse acontecimento tão cheio de significado quer ser uma ocasião para rezar por aqueles que perderam a vida na II Guerra Mundial e para fazer uma meditação renovada sobre o tremendo flagelo da guerra”.
Muitos conflitos em diferentes partes do mundo ainda estão abertos hoje. Penso em particular na martirizada Ucrânia, na Palestina e Israel, no Sudão e Mianmar, onde as armas ainda fazem barulho e mais sangue humano continua sendo derramado.

“Esses são dramas que afetam inúmeras vítimas inocentes, cujos gritos de terror e sofrimento questionam a consciência de todos: não podemos e não devemos ceder à lógica das armas!”

O apelo de Paulo VI à ONU
O Pontífice recorda que “vinte anos após o fim da II Guerra Mundial, em 1965, o Papa São Paulo VI, falando na ONU, perguntou: ‘Será que o mundo chegará a mudar a mentalidade particularista e bélica que até agora teceu grande parte de sua história?'” Segundo Francisco, “essa pergunta, que ainda aguarda uma resposta, estimula todos a trabalhar concretamente pela paz na Europa e em todo o mundo”.

“A paz é um dom de Deus que também deve encontrar hoje corações dispostos a acolhê-lo e trabalhar para serem construtores da reconciliação e testemunhas da esperança.”

Ser construtor de paz
Francisco espera “que as iniciativas promovidas para comemorar o voto popular à Mãe de Deus, nos quatro lugares que foram protagonistas daquele acontecimento, possam reavivar nos romanos a intenção de serem construtores de uma verdadeira paz em todos os lugares, relançando a fraternidade como condição essencial para recompor conflitos e hostilidade”. “Pode ser construtor de paz”, ressalta o Papa, “quem a possui dentro de si e, com coragem e mansidão, se compromete em criar vínculos, em estabelecer relações entre as pessoas, em apaziguar as tensões na família, no trabalho, na escola, entre os amigos”.
O Pontífice conclui a carta, pedindo a Nossa Senhora Medianeira para que “obtenha para toda a humanidade o dom da concórdia e da paz” e confia “todos os habitantes de Roma, especialmente os idosos, os doentes, as pessoas sozinhas e em dificuldade, à intercessão materna da Salus Populi Romani”.

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Indonésia. Ilha de Flores ainda é uma “terra prometida” de vocações

“Em junho e julho estão programadas várias ordenações diaconais entre os vários institutos missionários. No domingo, 2 de junho, 48 foram ordenados diáconos Verbitas, que serão seguidos por outros 8 diáconos Carmelitas no dia 7 de junho, e 27 interdiocesanos (Dioceses de Maumere, Ende, Ruteng, Larantuka e Denpasar) no domingo, 9 de junho. A esses se seguirão as ordenações de cinco diáconos Camilianos no próximo dia 14 de julho, na festa de nosso fundador, São Camilo de Lellis”, conta Pe. Galvani
Vatican News

 

Em 1924 os vigários e prefeitos apostólicos encontraram-se pela primeira vez, para definir uma orientação comum sobre diversas questões da vida da Igreja e sobre a relação com as …

“Nesta época de final de ano letivo, estamos obtendo bons resultados vocacionais. Nós, Camilianos, tentamos nos manter em forma tanto quanto possível com muitas pequenas coisas boas para fazer, não apenas no campo vocacional, mas também com nossas iniciativas sociais e de caridade.”
É o que conta à agência missionária Fides o padre Luigi Galvani, pioneiro na Diocese de Maumere, na Indonésia, onde os Missionários Camilianos estão presentes em três dioceses com 4 seminários, dois centros sociais onde coordenam um programa de nutrição para 160 crianças pobres, apoio à distância para cerca de 20 estudantes merecedores, um projeto de “casas especiais” para libertar os doentes mentais de situações de opressão e, por fim, um modesto projeto de produção de água mineral e do sorvete “São Camilo”.
Ordenações diaconais entre os vários institutos missionários
“Em junho e julho – explica ele – estão programadas várias ordenações diaconais entre os vários institutos missionários. No domingo, 2 de junho, 48 foram ordenados diáconos Verbitas, que serão seguidos por outros 8 diáconos Carmelitas no dia 7 de junho, e 27 interdiocesanos (Dioceses de Maumere, Ende, Ruteng, Larantuka e Denpasar) no domingo, 9 de junho. A esses se seguirão as ordenações de cinco diáconos Camilianos no próximo dia 14 de julho, na festa de nosso fundador, São Camilo de Lellis”.
A mais católica das 17.000 ilhas do arquipélago indonésio

Em algumas áreas do país, que o Papa visitará em setembro, membros do clero local e de ordens religiosas masculinas e femininas moram por alguns dias em famílias católicas, …

“Nos próximos meses, haverá também as profissões religiosas de numerosos noviços e noviças dos vários institutos masculinos e femininos presentes na Diocese de Maumere, que, no momento, atingiram o número de 62 comunidades religiosas”.
“Todos esses resultados vocacionais encorajadores – conclui o missionário – certamente recompensam o empenho dos vários promotores, mas também são um testemunho da fé e do espírito missionário de centenas e centenas de famílias na ilha de Flores, que continua sendo a mais católica das 17.000 ilhas do arquipélago indonésio. Talvez seja também por isso que Flores é chamada de “terra prometida” de vocações.
(com Fides)

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África Central, quando uma Porta Santa se abriu para o mundo

O Jubileu Extraordinário da Misericórdia, em 2015, foi aberto em um lugar sem precedentes, longe do coração cristão do mundo, a Basílica de São Pedro, mas dentro do coração do Papa Francisco, em Bangui. O cardeal Dieudonné Nzapalainga, então arcebispo da capital da África Central, revive aquele dia memorável e o significado benéfico que a visita do Pontífice produziu ao longo do tempo.
Maria Milvia Morciano e Jean Charles Putzolu – Vatican News
É tarde e a noite se prepara lentamente para chegar, tingindo o céu de rosa e dourado. A porta da Catedral de Notre-Dame em Bangui se abre, empurrada por duas mãos firmes. A figura de Francisco está de pé, vigorosa. Muitos anos se passaram desde aquele 29 de novembro de 2015, o primeiro dia do Advento e a data de início do Jubileu Extraordinário da Misericórdia, que foi inaugurado, antecipadamente, em um lugar igualmente extraordinário, na capital da África Central. Pela primeira vez na história, a abertura da Porta Santa não se realiza na Basílica de São Pedro, no túmulo do Apóstolo, no centro do mundo cristão, mas em um lugar remoto, para muitos desconhecido.
Capital espiritual
A África Central é um dos países mais sangrentos e divididos do mundo. O Papa o escolheu justamente por esse motivo, para levar misericórdia e uma mensagem de paz a uma “terra que está sofrendo há vários anos com a guerra e o ódio, a incompreensão e a falta de paz. Mas nessa terra sofrida há também todos os países que estão passando através da cruz da guerra. Bangui se torna a capital espiritual da oração pela misericórdia do Pai. Todos nós pedimos paz, misericórdia, reconciliação, perdão, amor. Por Bangui, por toda a República Centro-Africana, por todo o mundo, pelos países que estão sofrendo com a guerra, pedimos paz!”, disse o Papa na praça da igreja, depois de sair de um papamóvel, desprovido de qualquer proteção contra possíveis perigos, onde o imã também concordou em se sentar.
Um gesto universal compreendido por todos
Uma tradição antiga é transferida para um país jovem. O significado de abrir a Porta Santa e cruzar o limiar está enraizado em um simbolismo ancestral que, em Bangui, se ramifica e dá novos frutos. Ele está revestido de futuro. O gesto do Papa Francisco foi revolucionário porque, em um lugar fechado, cheio de barreiras, ele abre uma porta para a esperança, convida as pessoas a entrarem para encontrar misericórdia e paz, para encontrar Cristo e serem transformadas. Ele traduz de forma cristã uma metáfora compreensível para todos, em qualquer lugar do mundo, de qualquer tradição, religião, experiência e história. Todos entendem que se trata de um rito de passagem fundamental e sagrado.
A linha de fronteira, o limes latim, ponto final, fechamento, é transformada em limen, limiar, abertura. Talvez não seja coincidência o fato de duas palavras opostas conterem a mesma raiz, mas é interessante lembrar o fato de que, na linguagem eclesiástica, a “visitatio ad limina apostolorum” é a visita dos peregrinos aos túmulos dos apóstolos Pedro e Paulo, que remonta aos primeiros séculos da Igreja, mais tarde estendida aos bispos. Tudo fala de Jubileu.
Portas Santas em toda parte
Naquele ano de Misericórdia, muitas Portas Santas foram abertas em todo o mundo, quase um sistema solar composto por milhares de estrelas brilhantes espalhadas pela Terra, mesmo nos lugares mais remotos. Foi uma grande oportunidade, um presente dado a todos, mesmo àqueles que, por vários motivos, não podiam se locomover e viajar. Foi um jubileu extraordinário que pôde ser vivenciado em todas as igrejas locais, permitindo que aqueles que quisessem vivenciar plenamente o evento, fazer a peregrinação e atravessar a Porta da Misericórdia em sua própria diocese.
Uma esperança que vem de Roma
O cardeal Dieudonné Nzapalainga, então arcebispo de Bangui, é um dos intérpretes nodais de seu país. Sua história é de fé e de uma árdua “luta pela paz”, lembrando o título de seu livro na versão italiana, publicado pela Livraria Editora Vaticana em 2022. O cardeal centro-africano compartilhou com a mídia vaticana, aos microfones de Jean Charles Putzolu, a memória daqueles dias e as consequências benéficas da visita do Papa à África Central.
Gostaria de levá-los de volta ao dia 29 de novembro de 2015, o primeiro domingo do Advento, quando o Papa Francisco abriu a Porta Santa do Jubileu da Misericórdia. Foi em Bangui, na República Centro-Africana, portanto, em seu país: uma tradição muito antiga chegando a um país jovem. Em sua opinião, qual foi o significado desse gesto para todos os centro-africanos?
É um gesto único na história não apenas da Igreja universal, mas também da nossa Igreja.
Porque nós, centro-africanos, diante da violência, do sofrimento e da morte, encontrando-nos vivendo em um estado de absurdo, sentimos a esperança que veio de Roma por meio do homem de Deus, o Papa, que veio para aplacar, para trazer paz, tranquilidade e perdão, para trazer reconciliação, convidando nós, centro-africanos, a abrir as portas de nossos corações, cheios de ódio, rancor e vingança, para que pudéssemos nos enfrentar. É por isso que ele mesmo disse para depormos nossas armas: “leve a justiça, leve o amor”. Acredito que seu gesto será sempre lembrado aqui na República Centro-Africana. Muçulmanos, protestantes, católicos, todos nós somos unânimes em dizer que sua chegada foi salutar.
E o Papa de fato chegou. Ela se lembrou dessa mensagem, desse chamado para depor as armas. Havia uma enorme tensão até quase dois dias antes de sua chegada a Bangui. Houve mais tensão desde então? Essa mensagem foi ouvida? A mensagem do Papa foi ouvida e atendida? As armas ficaram em silêncio?
Acho que a mensagem foi ouvida. Passamos seis meses desde a partida do Papa como se estivéssemos em um país normal, algo impensável até dois dias antes de sua chegada. Sua chegada aliviou a pressão. Vimos muçulmanos saindo de seus enclaves para se juntarem a seus irmãos e irmãs católicos no estádio, para participar da grande celebração. As pessoas iam e vinham. O Km 5 [marco 5] era considerado um local onde havia muitas armas e, portanto, não se podia entrar. Mas fui até lá com os cristãos para acompanhar o Papa, dizendo aos muçulmanos: “vamos caminhar juntos!”
O Papa veio de Roma para a República Centro-Africana, os cristãos de Bangui deixaram nossos bairros para ir ao encontro de nossos irmãos, caminhando pela paz. Bem, nós marchamos e continuamos a fazê-lo desde aquele dia. Um líder rebelde nos disse que deveríamos conversar sobre espiritualidade com os imãs. Os imãs organizaram uma grande reunião para pedir aos líderes rebeldes que depusessem suas armas e muita coisa mudou desde então. Isso também foi resultado da visita do Papa.
Os imãs realizaram um grande encontro para pedir aos líderes rebeldes que deponham as armas e isso mudou muito. Esse também foi o resultado da visita do Papa, que nos deu um empurrão, nos fez recomeçar e agora estamos vendo os resultados. Hoje as armas não circulam mais como antes.
Em sua opinião, quais foram os outros frutos desse evento?
Foram os encontros entre jovens muçulmanos e jovens cristãos. Encontros bastante regulares entre mulheres muçulmanas e mulheres cristãs, e entre nós, líderes. Há pouco tempo, em março, uma mesquita a 250 quilômetros daqui foi vandalizada. O imã, o pastor protestante e eu falamos ao coração de nossos fiéis para desarmá-los e convidá-los a cooperar, respeitar, valorizar e respeitar o local. Esse, em minha opinião, é o fruto dessa passagem. Agora também pedimos que a justiça seja feita. Isso significa que aqueles que perderam suas casas devem poder recuperá-las, o que significa que aqueles que moram na casa do vizinho há muito tempo devem ter a gentileza de sair. E nós, líderes religiosos, trabalhamos com o coração. Há alguns que saem para deixar a casa para os proprietários sem passar pelos tribunais ou pelo Estado. Portanto, acho que isso também é proveitoso. Agora os corações estão dispostos e podemos conversar, podemos imaginar um futuro comum.
Quando o senhor diz que eles saem de casa, é porque eles realmente a devolvem ao seu legítimo proprietário, certo?
Exatamente isso.
Em um nível mais pessoal, Vossa Eminência, quais são suas lembranças mais fortes e talvez mais vívidas daquele período?
A lembrança mais vívida é a de entrar no quilômetro 5 dois dias antes: era impossível atravessar o posto de controle. Eu estava lá. Vi com meus próprios olhos: o Papa escolheu ir em um veículo não blindado, mas em campo aberto. Todos sabiam que havia muitas armas no local. Francisco teve a coragem de ir até lá e vimos que o imã também concordou em ir no papamóvel. Essa é a imagem mais forte. Quando saí para ir ao estádio, vi muçulmanos saindo em massa, arriscando suas vidas. Foi sua fé que os levou a sair. Um imã nos disse: ‘O Papa não veio para vocês, cristãos, mas para nós, muçulmanos. Estávamos no enclave, estávamos na escravidão. Ele nos libertou!”
Eminência, uma última pergunta: o senhor se tornou inseparável do Imã… entre cristãos e muçulmanos e também com os protestantes. Vocês realizam iniciativas juntos quase diariamente. Esse é outro fruto. É claro que é o resultado de seu trabalho, mas também é o resultado da visita do Papa…
A visita do papa nos confortou, incentivou e apoiou nesse trabalho. E fomos nós três que pedimos a ele que viesse à República Centro-Africana. Acho que todos nós somos gratos a ele. Esse é o fruto de sua passagem.
O Jubileu de 2025. Como estão se preparando para ele?
O Jubileu de 2025 é um momento importante para a Igreja. Bem, já estão sendo criados grupos aqui para refletir, orar, reunir-se e também para ver como, localmente, viveremos esse momento. Este ano celebraremos 130 anos de evangelização na República Centro-Africana e, ao mesmo tempo, estaremos caminhando para 2025, que está logo ali, e estamos trabalhando em ambos. Portanto, acho que há muito entusiasmo. Eu estava com um grupo de jovens que se encontrava na igreja em massa e dissemos uns aos outros: este é um momento importante porque é um momento de graça, mas também é um momento complicado e elevado. Não podemos deixar passar esse momento favorável.

O cardeal Dieudonné Nzapalainga

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