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Schevchuk: “Não se esqueçam de nós. A solidariedade salva vidas”

A gratidão pelas ajudas e a solidariedade, a “pastoral do luto” desenvolvida pelo clero local, a força alimentada pela fé em meio à morte quotidiana. Falando à Rádio Vaticana, os sentimentos do chefe da Igreja Greco-Católica,após dois anos de guerra.
Svitlana Dukhovych – Cidade do Vaticano
“Pedimos ao Senhor a paz para o nosso povo, pedimos que esta guerra termine o mais rápido possível, pedimos ao Senhor que nos proteja do sofrimento, da morte. Mas é importante termos conciência de que o Senhor está mais pronto a dar do que nós a pedir. Isto nos dá esperança.”
Falando aos meios de comunicação do Vaticano, o arcebispo-mor de KyivHalyč, Sviatoslav Shevchuk, assim descreve o anseio pela paz que reside no coração do povo ucraniano. Um anseio acompanhado pela oração diária, assim como diária também o é, depois de dois anos, o som de sirenes e explosões que devastam o país.
Beatitude, já há dois anos muitas pessoas na Ucrânia acordam quase diariamente ao som de sirenes e explosões. Outros leem as notícias com preocupação. Os pensamentos de muitos vão para seus entes queridos que estão no front ou em lugares muito perigosos. A quem se dirige seu pensamento logo ao acordar quais são suas primeiras orações?
A primeira oração da manhã quando acordo é a oração de ação de graças. Porque verdadeiramente, quando a cada manhã te acorda e percebes que estás vivo, já tens um motivo profundo para agradecer ao Senhor, agradecer-lhe o dom do novo dia, o dom da vida que deves transformar no dom de ti mesmo a Deus, à sua greja, ao seu povo. Ultimamente o sentido dessa oração de agradecimento o encontro nestas palavras do profeta Isaías: «Então, às tuas invocações, o Senhor responderá, e a teus gritos dirá: “Eis-me aqui!”» (cf. Is 58, 9). É verdadeiramente algo que me toca e que dá sentido às outras orações, porque é uma palavra de esperança: diz que o Senhor está mais disposto a dar do que nós a pedir. Obviamente, pedimos ao Senhor a paz para o nossa gente, pedimos que esta guerra termine o mais rapidamente possível, pedimos ao Senhor que nos proteja do sofrimento, da morte. Mas antes de iniciar esta oração com os nossos pedidos, é importante estar conscientes de que o Senhor está mais pronto a dar do que nós a pedir. Isto nos dá esperança.
A guerra traz morte, sofrimento, causa ódio e cria graves problemas sociais. Como a Igreja tenta combater tudo isso?
Devo dizer que nestes dois anos de invasão em grande escala – mas na realidade são dez anos de guerra – a nossa Igreja desenvolveu um certo tipo de pastoral que posso chamar de pastoral do luto, porque devemos acompanhar as pessoas que choram, as pessoas que sofrem, as pessoas que vivem o luto pela perda dos familiares, da sua casa, do seu mundo. É um desafio porque é muito fácil ser pastores de gente feliz. Talvez hoje a cultura ocidental precise, por assim dizer, de uma “pastoral do prazer”, de uma “pastoral da comodidade”, de uma pastoral do mundo do consumo. O Santo Padre diz muitas vezes que esta pastoral pretende alertar o homem moderno contra esta cultura do descarte que procura o prazer cada vez mais intenso com menos responsabilidade. Mas em contextos de guerra nos deparamos vom um desafio completamente diferente: todos os dias vivemos a tragédia da destruição do nosso país, das nossas cidades, a cada dia vemos a morte com os nossos olhos e infelizmente ainda não temos uma clara perspectiva de quando tudo isso terminará. Por isso estamos perante uma situação de profunda dor entre o nosso povo e muitas vezes sentimo-nos impotentes face a tudo isto. O que podemos fazer? Às vezes é dada prioridade à presença, em vez de fazer algo: estar presente ao lado das pessoas que choram, tentando mostrar que o Senhor está conosco. Encontrar palavras adequadas para a mãe que está de luto pela morte do filho, encontrar palavras para abordar um jovem que perdeu as pernas e não sabe viver ou uma criança que viu com os próprios olhos a morte da mãe. O que você pode dizer a esta pobre criança que não sabe lidar não só com o relacionamento com outras pessoas, mas também consigo mesmo? Esta pastoral do luto é um desafio, mas é também uma pastoral da esperança, porque vemos que a fé cristã nos chama a levar a esperança da ressurreição no meio do luto das pessoas. Este é o contexto da nossa vida, da vida da Igreja e do anúncio do Evangelho nesta grande tragédia da guerra na Ucrânia.
Gostaria também de perguntar de onde vocês tiram forças – o senhor pessoalmente, os sacerdotes, as pessoas consagradas – para acompanhar as pessoas neste período obscuro?
Devo confessar honestamente que é um mistério. Nós não sabemos. Somente quando diriges o olhar para esse tempo de guerra que já passou – dois anos – consegues interpretar e entender de onde tirou tua força. Talvez seja a mesma experiência da presença de Deus que Moisés viveu no Sinai quando o Senhor lhe disse: não podes ver o meu rosto e permanecer vivo (cf. Ex 33, 20). Só podemos reconhecer esta presença que nos inspira, que recarrega as nossas forças olhando para as costas do Senhor que passa, que passou pela sua dor. Devo dizer que há alguns momentos em que nos sentimos recarregados: obviamente é a oração e os sacramentos da Igreja. Hoje podemos reafirmar esta famosa frase dos cristãos dos primeiros séculos: “Sine dominico non possumus”, ou seja, sem a celebração da Eucaristia não podemos viver nem trabalhar. Depois também a confissão frequente: há uma grande redescoberta do Sacramento da Reconciliação que cura as nossas feridas espirituais, mas também as da psique humana. Porque vivemos todos os dias em perigo iminente de morte. Por exemplo, não sei se daqui a uma hora ainda estarei vivo: esta é a nossa realidade. Portanto, devemos estar sempre prontos para morrer e nos apresentar diante da face de nosso Senhor.
Depois há também um terceiro momento que afeta a nossa atividade: obviamente, depois de cada bombardeamento, a cada ataque de mísseis percebemos o medo, sofremos novas feridas psicológicas, mas é importante transformar esta energia do medo em ação. Muitas pessoas relataram que após cada ataque com mísseis notam um aumento na atividade. Essa energia que explode dentro de ti ao ouvir o estrondo das explosões e o tremor de sua casa deve ser transformada em uma ação de solidariedade, de serviço: fazer o bem ajuda a curar, transformando tua dor em solidariedade com quem chora, transforma teu luto em caridade cristã. Esta transformação do “ser” em “agir”, mas em ação positiva e construtiva, é algo que nos dá esperança. Talvez estas três realidades possam ser percebidas como um segredo da nossa resistência, o segredo da esperança cristã do povo ucraniano hoje.
Então, será que o povo ucraniano continua a ter esperança, apesar de ter todos os motivos para estar desesperado?
Devo dizer que estamos feridos, mas não desesperados. Como diz São Paulo, Somos abatidos, mas não somos destruídos (cf. 2 Cor 4, 9). Todos os dias experimentamos a morte de nosso Senhor Jesus Cristo em nossa carne, para experimentar sua ressurreição. As pessoas que acreditam na vida eterna, as pessoas que acreditam no Cristo ressuscitado, encontram esperança. E devo dizer que a esperança não é um sentimento vão, de confiar cegamente naquilo que não se conhece. Não, esta não é uma esperança cristã. O sentido da esperança cristã é a vida do Ressuscitado: certamente ressuscitaremos. Já carregamos essa esperança em nossas vidas hoje, mas ela só será plenamente revelada na vida futura. Portanto, a esperança cristã é uma virtude que envolve a vontade, o teu modo de pensar, a tua razão e os teus sentimentos. Portanto, é a esperança cristã que nos abre novas perspectivas. Na Ucrânia podemos ouvir frequentemente a frase latina “Contra spem Spero” (Espero contra toda esperança), que também se tornou o título de um poema da famosa poetisa ucraniana Lesja Ukrainka (1871-1913): esperamos de uma forma cristã contra uma simplesmente desespero humano. Portanto, o olhar cristão pode ver nestas condições uma luz de fé que talvez os não-crentes não possam perceber.
O Sínodo dos bispos greco-católicos na Ucrânia, que se reuniu no início de fevereiro, teve como tema principal a pastoral da família. Quais são os principais desafios nesta área e o que vocês estão tentando fazer como Igreja?
Hoje, o plano pastoral da nossa Igreja, que concordamos a nível do Sínodo, pode resumir-se na perspectiva de curar as feridas do povo. Uma das prioridades desta atenção pastoral é a pastoral das famílias em situação de luto. É importante compreender como acompanhar a família e fizemos uma análise aprofundada da situação de vida da família ucraniana. Em primeiro lugar, compreendemos que a maioria das famílias ucranianas vive, infelizmente, uma situação de separação forçada. A maioria dos homens hoje luta. Isto significa que estas famílias vivem sem a presença diária do pai. Depois temos a emigração massiva: cerca de 14 milhões de ucranianos foram forçados a abandonar as suas casas. A grande maioria mudou-se dentro do país, especialmente das regiões orientais para as partes central e ocidental. Depois, quase 6 milhões de pessoas deixaram a Ucrânia. Alguns regressaram, outros continuaram em direção a outros países. Significa que estas famílias estão separadas porque os homens não podem sair da Ucrânia. A grande maioria, 80%, dos refugiados de guerra ucranianos na Europa são mulheres jovens com os seus filhos. É a grande tragédia da separação. As estatísticas oficiais dizem-nos que em 2023 foram registados mais de 170 mil casamentos na Ucrânia, o número mais baixo da história do país independente. Em alguns anos, foram registrados 600 mil novos casamentos. Mas há outra estatística que nos assustou bastante: além dos poucos casamentos, ocorreram também 120 mil divórcios. Enfrentando este grande desafio, o Estado ucraniano oferece hoje o casamento registado no prazo de um dia, ou seja, as pessoas podem candidatar-se on-line e num dia a sua união civil será registada junto do governo. Isto, por um lado, parece facilitar este registo do casamento civil, mas por outro banaliza o próprio conceito de família. Se em um dia você consegue se cadastrar, significa que no dia seguinte você pode se divorciar e algo importante será encarado de ânimo leve, sem profundo envolvimento e responsabilidade. Há também outra situação que nos faz refletir. Antes da guerra, os grandes desafios consistiam em dois tipos de famílias: as famílias disfuncionais, ou seja, aquelas em crise, que estavam à beira do divórcio e que a Igreja tinha de acompanhar para fortalecer este vínculo familiar, e as famílias dos emigrantes, quando a mãe, a mulher ia procurar trabalho na Itália, Grécia e outros países europeus e o marido ficava em casa com os filhos. Trazer a mãe de volta à família é verdadeiramente um desafio: como reintegrar estas pessoas na sociedade ucraniana, na sua própria família. Mas agora temos quatro novos desafios para a pastoral da família. Em primeiro lugar, temos famílias que perderam um familiar, famílias jovens, por exemplo, uma jovem esposa que perdeu o marido e não consegue explicar aos filhos quando o pai regressará. Estas jovens viúvas na Ucrânia hoje são chamadas de “tulipas negras”. É realmente uma tragédia e devemos acompanhar estas famílias. A outra tragédia é a das famílias daqueles que ficaram gravemente feridos na guerra. Hoje, segundo estatísticas oficiais, na Ucrânia temos 200 mil pessoas, ex-militares e civis, gravemente feridas. E a família arca com todo o ônus do acompanhamento e assistência social e médica do acidentado. Muitas vezes estas famílias são abandonadas pelo Estado que não consegue oferecer uma assistência social adequada. Estas pessoas gravemente feridas que necessitam de cuidados médicos específicos muitas vezes nem sequer têm comida suficiente. Estima-se que entre estes 200 mil feridos, 50 mil perderam pernas ou braços, sobretudo jovens, e necessitam de reabilitação e cuidados específicos. Acompanhar essas pessoas não significa apenas cuidar do corpo, elas precisam de atendimento psicológico profissional, mas isso não funciona sem acompanhamento espiritual. E como podemos acompanhar espiritualmente uma jovem de 23 anos que perdeu os braços? É realmente um grande desafio. Depois temos outras famílias que receberam a notícia de que um de seus parentes está desaparecido no front e não há notícias dele. Oficialmente 35 mil pessoas estão registradas como desaparecidas. Não podes imaginar o inferno que passam a mãe e o pai que não têm notícias do filho ou a esposa que vive sem notícias do marido! Imagine uma mulher de 25 anos com dois filhos dizendo: “Não sei pelo que rezar, porque não sei se meu marido está vivo ou morto. Sou viúva ou não? Como posso organizar minha vida?”. Isso se torna uma tortura, porque a criança pergunta todos os dias, todas as manhãs: “Quando meu pai vai voltar?”. E aquela mulher não sabe o que responder, não sabe como dizer ao filho se o pai dele está vivo ou morto. Cada vez que se anuncia uma nova troca de presos e quando aparecem pessoas anteriormente registadas como desaparecidas, estas esperanças são reavivadas, mas ao lado da esperança também se reavivam a dor, a desilusão e o sofrimento profundo. Depois temos também outra categoria que são as famílias dos prisioneiros de guerra e acompanhá-los é um desafio muito difícil. Devo dizer que em cada paróquia que visito, deparo-me com intermináveis ​​listas de familiares prisioneiros de guerra. Recolho continuamente estes nomes, olho para estes rostos de jovens e os transmito ao Santo Padre. De vez em quando escrevo uma carta com uma nova lista de prisioneiros de guerra. Estou profundamente grato ao Santo Padre pelo seu empenho na libertação dos prisioneiros de guerra. Sabemos onde estão alguns, outros não. Rezamos para que um dia eles sejam libertados e voltem para casa. Esta é a imagem do sofrimento da família ucraniana hoje, foi assim que a guerra afetou o coração da sociedade ucraniana, ou seja, a família. Outra dimensão da vida da sociedade ucraniana são as crianças. Estamos assistindo a um declínio dramático nos nascimentos na Ucrânia. Segundo estatísticas estatais, 210 mil crianças nasceram na Ucrânia em 2023. Para o ano de 2024 são esperados apenas 180 mil nascimentos. Um terço do que normalmente acontecia na Ucrânia. Oficialmente, o governo ucraniano afirma que 527 crianças foram mortas e 1.224 ficaram feridas com graus variados de gravidade. Obviamente, um grande crime contra a dignidade da criança é a deportação pelo governo russo de crianças ucranianas de áreas ocupadas pela Rússia e que foram, portanto, separadas dos seus pais. As autoridades ucranianas afirmam ter identificado e verificado informações sobre quase 20 mil crianças que foram deportadas para a Rússia durante a guerra em grande escala. O número total de crianças que, segundo fontes russas, foram trazidas, de diversas formas, dos territórios ocupados para a Rússia é de aproximadamente 700 mil. O governo ucraniano afirma que, em 24 de janeiro de 2024, 388 crianças foram devolvida à Ucrânia, o que é um número relativamente pequeno. Estamos gratos pelo fato de o Tribunal Internacional estar estudando este fenômeno e já o definir como um crime contra a humanidade. Mas devemos rezar por estas crianças porque estão entre as mais fracas e vulneráveis ​​e durante a guerra aqueles que mais sofrem, aqueles que recebem as feridas mais devastadoras são os mais fracos. Este fenômeno das crianças da guerra na Ucrânia é mais um desastre humanitário que nós hoje, como Igreja, devemos enfrentar, devemos dar voz a estas crianças silenciadas, ajudar os pais a encontrar os seus filhos e também acompanhá-los. Conheci algumas crianças que foram deportadas pelos russos e depois, por meio de vários mecanismos internacionais, incluindo a missão do cardeal Matteo Zuppi, foram devolvidas às suas famílias. Estas crianças necessitam realmente de cuidados específicos, merecem uma grande atenção, um acompanhamento pastoral muito particular, porque na sua tenra idade experimentaram todas as possíveis crueldades humanas que nós, adultos, nem sequer podemos imaginar e algumas delas foram exploradas sexualmente. Este é um grito de dor vindo da Ucrânia que o mundo inteiro deve ser capaz de perceber e ouvir.
Qual é a sua mensagem aos católicos de todo o mundo, dois anos após o início da invasão em grande escala?
Vamos fazer de tudo para acabar com esta guerra sem sentido! Devemos procurar todos os meios para conter o agressor, porque a guerra traz sempre consigo a morte, a tragédia, a destruição da pessoa humana e de toda a sociedade. Gostaria que hoje os nossos irmãos e irmãs na Europa e em todo o mundo compreendessem que a guerra na Ucrânia não é a “guerra ucraniana”, isto é, não é simplesmente um fenômeno que pode ser encerrado dentro das fronteiras do nosso sofredor país: é uma realidade que invade o mundo, é como um vulcão que entrou em erupção em território ucraniano, mas o seu fumo e a sua lava vão mais longe. Esta guerra irá, mais cedo ou mais tarde, afetar todos, não só o soldado no front e a sua família, mas também todos os que vivem perto ou longe das fronteiras da Ucrânia, da sociedade europeia e até da sociedade mundial. Por isso pedimos solidariedade. Não se esqueçam de nós porque se formos esquecidos e abandonados, este terremoto que hoje vivemos na Ucrânia abalará o mundo inteiro. Temos a esperança de que a solidariedade salve verdadeiramente vidas, a solidariedade pode ajudar-nos a encontrar soluções que talvez ainda não tenhamos identificado hoje. Não se esqueçam da Ucrânia, não nos abandonem no nosso luto e na nossa dor.

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